terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Um Dia na Terra

1 - Nick Cave é um desses que sempre me marcou, já vem de há muito. Bom nos bons dias, perfeito nos maus dias - qual desinfectante para feridas complicadas, qual analgésico para frustrações -, vem mesmo a calhar ouvi-lo falar na canção como desafiadora da morte, a única capaz e com força suficiente para fazer arrancar a cabeça do dragão. Não que a ouvir Nick Cave já não tivesse sentido esse estado em que nos parece possível arrancar a cabeça a esse temível monstro que ainda por cima voa e deita fogo das entranhas. 

2 - Nick Cave sabe dar a canção às palavras, mas também sabe dar as palavras à canção. É desses poucos - onde incluo Johnny Cash, Neil Young, Nick Drake, Mark Lanegan, Leonard Cohen, Van Morrison, Jim Morrison, Bob Dylan, Bruce Springsteen, Fausto, Sérgio Godinho, Serge Gainsbourgh, Paolo Conte, Chico Buarque, entre outros tantos; e não incluo tantos outros que são muito boa gente, certamente, até porque têm muito boa imprensa, mas de onde, enfim, ou muito me escapa, ou lhes falta um qualquer destes dois atributos para completar a equação, sobretudo dar a canção às palavras. Já nem falo dessa força, dessa fúria, desse intento visceral, da sentida inspiração, da mesmo que momentânea iluminação, da capacidade que nos faz ao menos acreditar que, se não é tudo possível, pelo menos é possível qualquer coisa, quanto mais não seja ouvir uma canção que nos encha as medidas. Isto com o maior dos pessimismos, claro, com a absoluta descrença do falhanço. Com tudo o que Nick Cave tem criado desde os Birthday Party. 

3 - Junto ao poder do cinema, à forma como nele se pode projectar o valor do som e da imagem em sua gramática própria fundida às da canção e da palavra. Nick Cave diz que passa o tempo emerso a escrever, da escrita surgem as canções. Da vida, da morte e do porquê disto tudo ser tão escuro, tão negro, confuso, perdido. No labirinto de Cave, o que não é lúdico pelo seu humor tão negro, é trágico nesse sentido poético do termo, onde a saída é a sublimação do sentimento que não há saída. De onde se impõe por exemplo aquele encandeante acorde de orgão de Warren Ellis. Ou aquele final onde se completam e colam as diferentes peças do filme com a naturalidade como se explica a Forma da canção. 

4 - Outra coisa são as palavras que trazem de dentro profundidades inauditas. Mas eis que entretanto as ideias já entraram, tomaram parte na casa... Verdade que vieram de dentro, seguindo a intuição segundo seu preceito de pensamento total concentrado, de expressão da sua e da nossa singularidade. Porque só nos conhecemos a nós próprios, quando, enfim, ainda não nos tínhamos conhecido.

5 - Isto num dia de nevoeiro, Nick Cave falava do tempo, da forma como temia a natureza a partir da janela de sua casa frente ao mar na cidade inglesa de Brighton. Eu pus-me a pensar que sim, que havia ali esse nobre velho sentimento respeitoso do temente a algo que nos ultrapassa e nos é incomensuravelmente superior - algo bem próximo e descendente directo desse antigo temente a Deus com que o homem se tomava perante a sua real insignificância, e que hoje faz condão em esquecer e ignorar... Depois, ou cada vez mais de vem em quando, lá vem a "velha" Natureza ser lembrada, antes de mais nada, num qualquer alerta vermelho. Depois... Cave falava nas nuvens que cada vez mais se vêem no céu a ameaçar a catástrofe. O que da Natureza e por sua natureza vem de quem está habituado a enfrentar dragões. 

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PS: Este post vai atrasado, este blogue não é pago, e com isto aproveito para dizer que ainda há uma sessão diária do filme às 20 horas, enquanto houver sessões e enquanto houver salas... 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

F



Comecemos pela Estrutura literária, essa maquinaria de realidade em F, de Luís Seabra. Uma lógica totalitária de que perigosamente nos aproximamos hoje quando a mentira é escondida por cosméticas, por forjados factos, por novas palavras para dizer o contrário do que significam, onde a orwelliana novilíngua ganha outras novas audaciosas cores. Tratando-se F de uma obra sobre o totalitarismo num futuro possível de estado policial total (com 10 % da população presa, todo o restante é suspeito) onde o único escape possível é o espaço do sono e do sonho por onde o detido se pode, enfim, libertar, mas onde o pesadelo é o único (elo) possível para o estado de vigília, qual teste de stress para os perigos da selva e antecipação dos piores cenários - de tortura, de medo, pressão constante da vigia e delação - de pesadelo como única chave dentro do pesadelo, o medo como única chave dentro do medo. Neste aspecto F remete-nos ao fascismo e estalinismo, entre outros totalitarismos, aos métodos sádicos de uma PIDE ou de uma Stasi. Mas não fosse apenas esse passado que nos assombra, não, para quem ler bem, em F é o presente que nos assombra. O presente como um futuro que temos muito por onde suspeitar, e se não assustar, pelo menos prevenir. Temos no presente o exemplo das prisões privatizadas de certas zonas dos Estados Unidos, bem dentro da lógica do lucro neoliberal, podemos supor um presente-futuro por essa mesma lógica corporativa que cada vez mais nos tolhe a esperança, que toma conta de nós próprios e dos nossos dias, dos nosso próprios governos, da Democracia, que dá-nos cabo da liberdade - ao que se torna implícita uma certa ideia de prisão, que neste plano inclinado por onde tudo piora, e tomando conta da linguagem, como bem sabemos que toma, pelo mecanismo da propaganda, pode adquirir no Estado Policial outros contornos mais explícitos. 
Esses mesmos contornos tomam mesmo forma em F nos orwellianos Politique Nacionale de Regroupement Préventif, Ministére des Libertés et des Privations Publiques, Ministére du Conformisme, bem como nessa lecture contrante que nos lembra, e de certa forma remete, para esse dois minutos de ódio de 1984, de George Orwell. mesmo que numa lógica ainda mais sádica e perversa...

Quanto mais não seja porque F é sobretudo um romance de Estrutura, o que caracteriza a verdadeira literatura, que não se resume apenas ao que se passa e acontece, ao biográfico, ao arbitrário, ao aleatório, ao prosaico da vidinha. É a Estrutura que verdadeiramente comanda e distingue a literatura, que de certa forma protege a literatura, que ajuda a erguer a literatura, que torna a própria literatura como uma máquina da (sua própria) realidade. Em F a Estrutura é pois esse motor, força implacável que se autonomiza em si própria, que cria as suas próprias regras, que nunca se desliga do seu todo, do seu propósito. 
Pessoalmente, numa obra gosto de observar de perto o "como é feito", ou o bem feito, se quiserem, e a verdade é que não há uma costura, como li algures numa das muitas críticas francesas à obra, tudo é feito de um modo e precisão clínica, há em F um sentido de economia, síntese, concisão, precisão e eficácia que o tornam absolutamente vertiginoso, mas vertiginoso em seu duplo sentido do termo - velocidade de leitura, e vertigem perante o abismo lá em baixo...

Mas voltemos ao presente, ao (nosso) mundo com esses certos dirigentes e funcionários das corporações que nos mandam e comandam os dias, quais oligarcas, o nosso sistema económico, e, cada vez mais, o nosso sistema político, já para nem falar na massiva propaganda. Têm para isso esse bom veículo: os idiotas úteis e "úteis" que não têm o que nunca tiveram nem podem ter na vida: uma voz própria. O que não quer dizer que não tenham uma voz, e uma voz bem mais forte que a nossa: a voz da corporação, da organização, do orgão, da empresa, tomado com princípio, meio e fim de todas as coisas. Mas não só, também como alimento de onde extraem a energia, a razão de ser, de estar, de viver, sentido (único) de utilidade, até mesmo, vá-lá, de um certo módico de talento, e também, porque não, desse génio perverso que mais não vem que desse tão forte e puro instinto de sobrevivência de todos os medíocres deste planeta. Sempre e sempre na defensiva, claro, pois nada existe fora da organização. Onde a liberdade, qualquer forma de liberdade, por mais ténue que seja, é tomada como a verdadeira inimiga, o alvo a abater. À qual o medo, o terror e a constante suspeita são a única possível e eficaz forma de a poder neutralizar e domesticar. Porém é preciso mais alguma coisa, de forma a tomar a tarefa possível, para organizar (desorganizando), para legitimar por fim, a organização totalitária é precisa a mais intrincada burocracia.  
A isso, normalmente, há um dado que escapa: a burocracia tem de ser incoerente. Também não deve ser claramente inteligível (apenas o suficiente) e deve ser pautada pela disfuncionalidade, uma disfuncionalidade não assumida. Ou seja, a matéria de aperfeiçoamento deve confundir-se com sua matéria de confusão. Com coerência não sobra espaço para manigâncias. Com coerência há um módico de regras, um jogo de causa-consequência, um mínimo sentido de regra e de justiça. Sobra assim pouco para o escorregadio, para a calúnia escondida, para o veneno sub-reptício. Porém a própria mentira, como algo assumido, assumiria sua verdade, claro está, a novilíngua-propaganda tem de dizer que sua mentira intrínseca é verdade. Que nada é digno de ser questionado, algo que só a burocracia legitima, alimenta. Todos os átomos dessa Prisão de Schendorf - com os seus detidos e seus polícias e directores e vigilantes, todos delatores - estão encerrados nessa mesma estrutura molecular de Prisão Ideia. O princípio, o meio e o fim último só querem dizer uma coisa: Prisão. Todos estão presos. Lá fora também. Da própria prisão já não há escape. Onde tudo (nos) é vigiado. Onde se é detido em intrincados mecanismos burocráticos, claro está. Numa sociedade onde o delito maior é ir, nem que seja ao de leve, contra essa mesma ideia de sociedade como prisão. 

Não é preciso irmos muito longe, basta pensarmos na nossa PIDE, e não é preciso dizer mais nada... Claro que é necessária a Mentira para simular as formas. Claro que é necessário o Terror e o Medo para não dar espaço ao pensamento. É necessário que o individuo se renda, mas que se renda incondicionalmente. É preciso encerrá-lo, completamente, sua prisão intrínseca não deve gerar aberturas, se o gerar cá fora, é preciso pois encerrá-lo dentro. Nesse mecanismo, político e/ou corporativo, o indivíduo não conta, não existe. É preciso jogar com os piores fantasmas da mente, com o modus operandi da constante e absoluta desconfiança, com a quebra de toda motivação, pela mais aleatória imprevisibilidade onde cada um sabe que pode a qualquer momento ser apanhado pelas engrenagem implacável de uma sociedade prisional totalitária. 
Remetemo-nos aqui para romances como 1984, ou Brave New World, ou mesmo o Processo de Kafka, entre outros. F deixa um alerta claro, um aviso. Deixa-nos de certa forma em sentido, mas por outro lado não nos deixa de deslumbrar em seu jogo cirúrgico, que nos manipula e leva exactamente como e para onde quer, em termos físicos e como ideia: para a prisão. Ali estamos tão desorientados como o advogado Linz, ou o Director da prisão Boehm, ou o preso F, que tem o verdadeiro poder, e é muito mais que um preso, e mais não digo. Mudemos de assunto.

A pena do escritor parece conhecer aqui cada palmo de terreno, seu próprio tabuleiro de jogo. Comanda e domina os recursos com uma notável lucidez visionária, ao mesmo tempo que em torrente (não confundir com torrencial), cadência e ritmo uniformes, mas impiedosamente incessantes, a matéria é contada nessa tal dupla vertigem com uma notável gestão dos tempos. A própria informação (elíptica) é pois gerida por essa já tão nomeada Estrutura que se ergue a alta altura e que a própria leitura completa e integral da obra não deixa ver completamente. Nem poderia ser de outra maneira, de outra forma não haveria forma de deixar a via aberta à liberdade, ao sonho, à ficção. O veneno de F traz também a sua cura. 

Falando em Estrutura, outra referência menos óbvia, mas que está, a meu ver, bem presente, é Alfred Hitchcock, muito mais que a referência a David Lynch que tanto se repete na imprensa francesa. Não há em F uma ponta solta, mesmo que tudo possa ser, enfim, sonhado, o que há é sim essas típicas cadeias de suspense que arrasam "cenários" criando novos "cenários" com novos intrigantes (e intrincados) elementos num continuum inédito, intrigante e tanto ou quanto assustador. Há ali suspense, não qualquer ideia de terror subjacente, tudo se alicerça sim numa lógica geométrica cuja solidez, comprovada, em nada é garantida, e onde a cada instante, o chão pode cair debaixo dos nossos pés. Sim, estou a pensar em Vertigo - que devia ser traduzido em português como Vertigem mas saiu esse "misterioso" A Mulher Que Viveu Duas Vezes
Em suma, é como se a ideia de Prisão per se, até ás suas ultimas consequências, constituísse o próprio MacGuffin da trama. Problema é que o espaço dado à adivinha e respiração é muito pouco, como é óbvio. A absoluta claustrofobia prisional assim o impõe. Contudo, esse claro, audacioso e mesmo intrépido jogo de adivinha, não tem como propósito o seu próprio adivinhar, daí o MacGuffin. 

Franz Kafka é presença ainda mais forte, sobretudo pelo seu lado intrigante e obsessivo, pelo seu lado lúdico perante o horrendo, numa certa forma como somos martelados pelas palavras, na impiedade bizarra e ao mesmo tempo livre e estranhamente objectiva. Porém, a meu ver, a maior influência de F - não tanto no estilo, mas sobretudo na forma e na ideia - está em Jorge Luis Borges. Borges não apenas pelo labirinto, que existe e tanto nos perde, mas sobretudo porque paira na obra como um todo, e assim no seu todo, marcando o início e o fim de F. Começando na frase inicial - "A certeza de que tudo está escrito nos anula ou faz de nós fantasmas" - que ao longo da leitura cada vez mais nos surge desligada da obra, mas que se introduz (diria que se injecta) em seu final para pôr os pontos nos iis - calibrando tudo em seu todo de sonho e/ou pesadelo - como Literatura, Estrutura, máquina literária total. 
Esse epílogo de F, borgiano quanto baste, é a centelha, a margem de esperança, esse céu que se abre sobre a Prisão de Schendorf e sobre nós com ela. E como Borges também tinha seus pesadelos, essa ideia do não está nada feito, é precisamente essa mesma mensagem de esperança que se deixa em aberto na leitura. De esperança sim, mas também de desafio, de mote, de urgência. Esse aviso que também é uma realidade: não está nada feito porque na realidade não está nada feito - a própria ideia de que está tudo feito em tudo carece de prova, problema é que nunca prova coisa nenhuma - mas sobretudo porque em si a ideia de que está tudo feito é a mais pura receita para a auto-anulação, para a renúncia do presente, para a arte de manipulação e lavagem cerebral, para a propaganda da mentira, em suma, para o desastre. A própria linguagem, no seu quê de jargão, exprime o óbvio contra tanto nariz empinado que é muito boa gente que para aí anda: se pensamos que está tudo feito, está tudo feito... 
Como se a liberdade já estivesse construída e não estivesse por construir, como a liberdade não fosse algo que se constantemente se conquistasse, como se a liberdade não fosse em si uma ideia de verdade. Sim, a ideia que está tudo tudo feito é apenas uma ideia de prisão...

domingo, 2 de novembro de 2014

DESPENSA

Ando a escrever textos para a despensa. Não se aproveitam, eu sei, mas sempre se podem aproveitar. Bem guardados e preservados, talvez um dia ainda me façam uso e já os tenho. E se vou lá buscá-los é porque preciso deles para alguma coisa. Uma despensa de textos, sim, de palavras, de frases, de ideias, de parágrafos, de expressões, coisas que não se distinguem muito das outras despensas bem ou mal arrumadas. Bem ou mel amanhadas.

Todos as têm, todas existem. Algures mais tarde que o dia de um princípio - esse arquétipo platónico da Despensa, a ideia de um princípio, o princípio da Despensa. Tenho-o aqui mesmo no Scrivener, guardado para a Dropbox. O que no século XX era para a gaveta, também o uso no bolso do casaco. Lá cabe um Black & Decker, há fita-cola, cola-tudo, chaves de fendas, chaves de pregos, alicates. Há até lá mais ferramentas de que nem sequer sei o nome. Às vezes tenho de perguntar a alguém, se não houver ninguém sempre posso usar o dicionário, ir a sítios da internet especializados, por vezes mesmo à Wikipedia. Só estou-me a esquecer do mais importante: o martelo. O martelo é das ferramentas que me dão mais jeito. 

Claro que é tudo uma questão de feitio, do feitio da despensa. Depois sim, o meu feitio lá se terá de arranjar com a forma como estão os meus escritos dispensados, guardados ou mesmo atirados à má ré por essa porta e depois fecho a porta - talvez até nunca mais. 

Essa despensa que abarca disciplina(s), mas que traz em si o mau arranjo das indisciplinas. Por outro lado - porque eu até agora apenas me fiquei pela caixa de ferramentas - não quer dizer, nem pouco mais ou menos, que vos esteja a falar de tudo. Porque, claro fica, há para lá muita mais tralha.
Por exemplo um escadote, por exemplo um aspirador que não trabalha, dois tapetes de rua, um tapete de banho, um banco partido, duas fichas triplas, quatro gavetas metálicas, madeiras várias… E ainda não toquei no mais importante: os produtos alimentares. Falo no atum de conserva, no feijão, no milho enlatado, nos quilos de arroz. Esse produtos uso mais que os alicates ou as chaves de parafuso, claro está. É quando nada mais tenho, e cozinhado ainda melhor. Se bem que dependa, é preciso aferir da qualidade do esboço escrito.

domingo, 26 de outubro de 2014

Estacionados e Agachados

Andamos todos ao mesmo, dizem certos. Não quero concordar. Porém circundo o bairro, são quase duas da manhã, e é como ver carros estacionados contornar a cidade inteira. Juventudes do presente, old vintage, velha guarda, num bar todos se guardam do tempo em reservas ultra-condescendentes. Portanto tudo na mesma, pior que a lesma. Nunca nos mexemos e mal contornamos os obstáculos. Estacionada no passado, a antiga expressão andamos todos ao mesmo soa ainda pior hoje. Do mais, é uma expressão feia, agachada, pior que a vulgar meter todos no mesmo saco. Na verdade, este ar aqui nunca foi fresco, puro só mesmo fora deste transito humano estacionado. Não há lugar para ninguém. Culpam, reculpam, desculpam, mas sempre consoante o estacionamento. Vá-lá que os automóveis guardam segredo. Não têm nada a ver com isso. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Navegação Ponto por Ponto

1 - Como é que o homem aprendeu a navegar? Tirou uma carta de marinheiro. Coisa recente. Antes podia ir navegando, navegando e navegado, lá ia escrevendo essa carta. Então era um ponto a ponto, ponto por ponto. Aos poucos, partindo, chegando, naufragando - das jangadas às barcas, das barcas aos navios mais avançados: petroleiros, cruzeiros, porta-aviões, cacilheiros... 

2 - Dizia que era giro o que dizia, giro no sentido de engraçado, com piada no sentido de gozado. Cheio desse sentido de humor unilateral que quer que os outros achem graça como George W. Bush queria exportar Democracia para o Iraque. 

3 - Gostava de ver-te tirar carta de marinheiro. Mais ainda que a escrevesses. Ponto por ponto. Escrever como? Pois, boa pergunta: escrever como? 


4 - Antes escrever o presente que editar o passado.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A Maldição do Detective

Quem viu a absoluta obra-prima (assim mesmo: absoluta obra-prima) que foi essa incrível série da HBO chamada "True Detective" sabe bem o que significa a Detective's Curse. Aplica-se à vida, claro. Então em relação à "incompetência" (as aspas são absolutamente deliberadas) deste Governo, o que está à frente do nariz é tão óbvio que nem parece verdade. Mas não é? Está mesmo à frente do nosso nariz. 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sentido

A palavra Sentido é o Santo Graal, o El Dorado. É o que quiserem da nossa língua, a palavra sentido pode até trazer em si o Quinto Império. É uma arma de construção maciça. Funde sentimento com direcção. Ou sentimento com propósito e direcção. Por outro lado, também pode tornar uma pessoa sentida. Ou deveras sentida. O que pode ser bom. Também pode ser mau, seu pólo negativo mostra que também pode ser uma arma de destruição, não diria maciça, mas no mínimo destrutiva. Tudo depende pois do uso que se dá ao sentido. Tanto do uso do seu sentido, como do seu uso sentido. Tudo faz sentido pelo sentido. 

Snobeira

A única diferença da snobeira de esquerda para as outras snobeiras é que esta acha que não é snobeira. E achando que não é snobeira também acha que tira o cavalinho da chuva à mais habitual snobeira, pois que sua autenticidade e pureza está imune e acima de toda a snobeira - essa coisa de direita, queque, essa coisa de classe... 
Já a snobeira de direita é uma snobeira que se orgulha e muito de si mesma. Auto-consciente e auto-estimada, bem trabalhadinha e aprumada, não se estranhe por isso que traga consigo uma mais variada gama de trejeitos e remoques, de tiques e de toques. De resto, zomba da snobeira à sua esquerda, sabendo que também ela é zombada. 
De resto, é tudo farinha do mesmo saco. Pudera, vem da mesma colheita, o produto é o mesmo. Nada difícil de entender à luz de umas luzes de Charles Darwin. Pensemos no exemplo dos ursos e suas diferenças devidamente adaptadas a cada meio ambiente natural. Um teve mesmo de se tornar branco (o magnífico urso polar), os outros, enfim, nem por isso. Mas são todos ursos. Ou não são ursos? 

Mímicas

- Ser adulto é saber ler as temperaturas e os diferentes comprimentos de onda. Mas não é preciso ter um termómetro...

- És jogo de ti próprio mais do que jogas o jogo de ti próprio.


Um simples propósito não quer dizer um de propósito, menos ainda um a propósito. Lá porque se combina bem, não é para ser sempre combinado. 

- Fatal erro de equilíbrio: confundir um desequilíbrio, com um em desequilíbrio. 

Jornal

Olhe-se bem para a etiqueta: não traz informação classificada. 


Algures no Peru, milhares deles se juntam na praia como numa romaria. No mar, dezenas ou centenas vão para ali saltar acrobacias, quais surfistas sem tábua. Mais também parecem ginastas olímpicos com seus mortais além  da crista da onda. Secção essa excelentemente narrada por Josh Brolin para a série documental Untamed Americas, que gravei há uns tempos ao acaso e é uma maravilha que não sei bem ainda como classificar, a não ser que dá no canal National Geographic. O que mais nos maravilha ali é a ideia, o rigor, a tenacidade que se sente em todo um trabalho de transposição de uma realidade instantânea e irrepetível, capacidade essa de não apenas dar a ver - o que faz toda a diferença - a mesma Natureza em seus enredos que amiúde repetidos acabam por aborrecer o leigo que apenas constata que as espécies existem. Género quem vê um vê muitos* .
Apanhando de tudo um pouco ao longo de todo um continente de norte a sul - do Alasca à Patagónia - tanto faz que seja ordenada ou aleatória a forma como é apresentada cada espécie ou situação dentro da temática de cada um dos quatro episódios: Montanhas, Costas, Desertos, Florestas. 
Uma banda sonora de reminiscências cinematograficas (a fazer lembrar o Paris/Texas ou qualquer road-movie que se preze) seguida pela sentida e impressiva narração de Brolin através de um texto que em sua verdade, metáfora, timbre e imagética consegue em cheio fundir ideia com presença. Ora é precisamente o que se vê que acaba de servir como mote. Cada sujeito, cada assunto, cada espécie, há ali muita coisa para contar, não temos apenas as belas ou tristes histórias de quem sobrevive ou não, e de quem se impõe ou não se impõe.
Cada espécie em sua especificidade que aprofundada se pode tornar idiossincrasia; ou com melhor sorte, ainda pode descambar em fábula. Falo em fábula moderna, ou pós-moderna,  se quiserem, também pode ser. Não, aqui já não é apenas o leão que vê e a fêmea que caça e a ursa que hiberna e depois tem de caçar. Não, somos muito mais parecidos com os animais do aquilo que pensamos. [continua...]

* - tive de ver muito documentário de leões na savana em criança e não só para, como simples leigo,  estar habilitado a dizer isto, alguns de vós também, aposto. É quase senso comum. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Um Diabo no Paraíso

O diabo está nos pormenores. Conrad Moricand, tornado (o) personagem de Um Diabo no Paraíso, de Henry Miller, adivinhara os signos de todos os comensais numa qualquer mesa de jantar. Podiam até mesmo estar de costas. Mesma coisa com certa senhora que, sei de fonte(s) fidedigna(s), olhava para alguém e logo lhe adivinhava o signo, o ascendente, a lua e o pormaior do pormenor do aspecto e da conjugação planetária...
Fernando Pessoa falhou o dia da sua morte em exactamente seis meses. Ele que previa e intuía bem dentro da alta astrologia. Mas que também recusaria saber numa mão seu Destino. Porque não somos donos do nosso Destino, dizia. Desta tomada de posição a propósito das artes de adivinha, e a previsão de seis meses certeiros ao lado da morte, há de haver um longo caminho escuro a percorrer. Ou mais prosaicamente, um valente buraco no texto. Ou talvez não. O suposto Diabo no Paraíso já não saía sequer do seu quartinho alugado. Capricórnio de signo, regido por esse Saturno de toda a limitação, como não podia deixar de ser, achava ele que nada podia fazer para poder lutar contra toda a adversidade que vinha escrita nas estrelas. As cartas, os horóscopos, alguns mesmo colados à parede, não o deixariam mentir... Tudo na miséria dos aspectos astrais batia certo, calculado, fazia todo o sentido. Entretanto desenrolava-se em todo o horror a Segunda Guerra Mundial. E entre os bombardeamentos, o ocultismo das cartas.
Eis tudo o que me lembro da leitura há mais de vinte anos desta singular obra de Henry Miller. Não era preciso ser uma obra-prima quando o que mais dali advinha era a fúria escarrapachada por e/ou contra aquele amigo que às tantas já não sabemos se afinal era um ex-amigo. Porque o que sobressai mesmo é essa zanga de espécie, essa tão humana zanga, que mais não é que uma imensa fúria contra o desagradável aviltamento humano. Existe mesmo gente assim. Gente que se torna impossível caída que está no paradoxo de adivinhar seu futuro. Escrever parece pois essencial para interpretar o fenómeno, não necessariamente o futuro, mas pelo menos certa gente. E apanhar o diabo nos pormenores. Talvez mesmo nalgum paraíso. 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

22.

Fugir de algumas praias em épocas altas é também estar em consonância com os robalos. Por exemplo há dias um dos veteranos daqui apanhou um daqueles enormes ao pé da ponte (três quilos, parece). Eu mesmo, se quisesse, bem podia ter-me armado em Robinson Crusoe. Tanto mas tanto robalo, nadando à beira mar, nadando à beira rio. Sem medo. O máximo mesmo era desviarem-se um pouco quando mergulhava, numa atitude que mais parecia dever à boa educação que outra coisa, como que a dizer deixa lá este aqui também poder nadar à vontade... De resto, é quase como se quisessem ser apanhados. Ou como se quisessem dali ser desafiados. Mas não vale a pena cair em aparências. Iludem, andávamos é ao mesmo, em paz e longe do maralhal, que volta. Que sempre volta. Pelo menos para ali sempre volta. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Cinema

Toda Ela é Cinema
Sua presença se sente
não apenas se vê
não se filma meramente

Também nem que a visse antes
Musa-imagem assim fotografada
Iria alguma vez imaginar como
Absorve todo meu olhar filmada

E que em seu longo plano me tento
Como vento a emergir da escada
Em todo um acto que só vendo
Pairar depois assim de mim picada

Toda Ela é Cinema
Longo curto mover fixada
Dissipando a parte do presente
É todo o plano ficará mais nada

"Let's Play Cards"

A violência em Abel Ferrara é uma violência. Não é agradável. Não é preciso pintá-la em sangue e morte para torná-la impressiva. Não é estilizada à Tarantino. Não é coisa de efeito (nem é) decorativo - mesmo quando traz em si todo um jogo... Também não é aquela violência reflexão sobre a violência, como em seu Mestre Pasolini. Abel Ferrara assume Pasolini e Godard à cabeça, e quando muito, John Cassavetes, mas tem de tocar seu próprio som, que isto a cada músico a sua peça. Isto escondendo muito bem o profundamente auto-biográfico, que com algum conhecimento de causa, se pode ver ali bem impresso em filme. Esse cinema de quem se sabe fundir num argumento para depois, na realização, na improvisação com os actores, na importância do som e da fotografia, e até mesmo na produção e tudo o que rodeia a feitura da obra - como não podia deixar de ser quando falamos em verdadeiro trabalho de equipa e espírito de missão ou mesmo de guerrilha - tudo se completar em seu círculo círculo coeso, denso e fechado: «is an honour to make movies, a gift from God», diz o cineasta ítalo-americano algures enquanto lembra esse Orson Welles que levou quase uma vida inteira a achar que começaria a filmar na semana seguinte...

Voltemos pois à violência, que é o que aqui é me interessa (eis no que dá começar posts pelo fim), ao invés de é aqui o que interessa. Porque apesar de tudo é uma violência que nunca é princípio, meio ou fim, pois não tem princípio, nem meio, nem fim - ou mesmo forma de (se) acabar. Essa violência que, improvisada, é também contida e distendida, para poder disparar a todo o momento. Como nesse célebre jogo de cartas que acabou quando nem sequer tinha começado. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014



Há uns anos andava por Campo de Ourique um sósia de Samuel Beckett. Não sei se algum de vós o viu. Se o viu então sabe. Eu via-o sempre ali perto do Bitoque, em plena Ferreira Borges. Depois um blogue entretanto extinto e depois reabilitado testemunhou-o para a posterioridade, ou pelo menos, vá-lá, como marca dos dias. Não era para menos e repito: Samuel Beckett ali perto do Bitoque, em plena Rua Ferreira Borges, muito fácil de encontrar.
Pois Vila Nova de Milfontes deu-me ontem o seu primeiro sósia. Um sósia menos distinto e brilhante. Mas distinto e brilhante de outra maneira. Era um sósia mas ainda assim foi preciso ver melhor. Então estava para ali de tablet na praia. Se arrastava a neurose não sei. Parecia é assim meio à rasca com qualquer coisa... A expressão a puxar o ansioso, os olhos assim meio esgazeados. Exactamente o Franky Vercauteren* do Sporting. Assim meio esgazeado, assim meio à rasca. 

*- o oposto do grandíssimo Vercauteren da minha infância que tão grande jogador era. 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O Clima e a Meteorologia

Disse que a deixava sempre em baixo. Ele acusou o toque. Pensava que era amor, que se amavam. Ela confundia infelicidade com cansaço. Ele cansaço com normalidade. Então ela acusou o toque. Se tinham vivido a felicidade, viviam agora a ilusão da felicidade, miragem de horizonte longínquo. Mas já só pela ilusão se dirigiam. Uma ilusão de espelho invertido. Ela a esconder a infelicidade. Ele a ver a máscara. Então nem sequer tentava. Cansaço. Era por si mesmo que se cansava. E se alguma vez esse cansaço desaparecesse, como por magia. Ambos iriam confundir clima com meteorologia.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Massagens

- Podia escrevê-lo, descrevê-lo, reinventa-lo, matá-lo, transformá-lo. Isto enquanto ia e vinha. Mas não, não merece. Não merece nem uma linha. 

- Literatura como literatura. Não literatura como relato. Literatura como máquina, como estrutura. Não literatura como perícia, como notícia.


- A frase é boa, mas sua arquitectura uma aberração. Sem engenharia nem guarida, sem sentido nem como beco sem saída.


- Escrevia, mantinha-os todos na linha. Vingaram-se, terão de voltar à linha.

- Fácil de distinguir. Uma é escrita que sai das entranhas. A outra força as entranhas. Uma vem de dentro, qual vulcão transbordante; a outra, não é preciso nos atirarmos a esse poço.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Sentir Bem Sentir Mal

Tanto fazemos porque sentimos que está certo. Por vezes mesmo contra o que nos diga o contrário, contra toda a razão que diz estás enganado, contra toda a evidência. Mas sentimos, sentimos que o devemos fazer, que temos de fazer, que é premente fazer, que é mesmo urgente e o mais correcto fazer. E esse sentir leva-nos e fazemos o que sentimos, o que a intuição nos manda e comanda até ao fim para percebermos que fizemos bem, que estávamos mesmo certos em seguir o que sentíamos certo. Damos então toda a razão a nós próprios, agradecemos, se for caso disso, também à bendita intuição, ao ser certeiro, damos por adquirido esse eu bem sabia, estava cá com um feeling, uma fezada (ou seria fé?), etc. 
Outras vezes - bastante menos, já que é preciso ter ultrapassado um tal "Meridiano da Intuição" e assim dar-lhe carta branca - vamos também nessa direcção, fazendo o que sentimos que é certo, achando mesmo que a dita infalível nunca falha nem se atrasa. Nunca mesmo até chegarmos à outra prova dos nove, ao diferente tira-teimas... Então nunca falhou até falhar... Depois, depois enfim, olha, chapéu, chatice, paciência, ui, que isto afinal estávamos errados, que eu não sei bem o que (me) aconteceu. Então se é grave estávamos completamente enganados, redonda mas redondamente enganados...

Vergílio Ferreira dizia que não havia isso do escrever bem, mas apenas o sentir bem. Tendo a concordar cada vez mais com isso. Cada vez mais tendo também a pensar nela, a pensar e a sentir que é verdadeira. E dá mesmo para usá-la de várias maneiras, assim à laia de prova cientifica. Por exemplo também posso dizer que não existe apenas o sentir bem como também o sentir bem bem, e o sentir bem mal. Só numa dessas de destronar certezas. De achar falível toda a arrogância que acha toda a intuição infalível. E assim me fico a sentir bem.

sábado, 13 de setembro de 2014

Gerador

Nas alturas em que a gente se sente mais fraca e toda a carga do mundo nos cai em cima. Quando nem centelha de luz nos deixa ver no escuro do túnel. Nessas alturas de degelo pessoal, dizia eu, de Inverno longo, desesperado. Nessas alturas sem qualquer espécie de altura, onde só há mesmo uma forma de poder encontrar algum calor que nos aqueça, alguma luz que nos faça ver um mínimo de qualquer coisa, qualquer coisa que nos faça existir: um gerador. Isso, um gerador. Pôr o motor da escrita a funcionar, ou à melhor, a trabalhar, constatar que afinal não enregelou, que afinal a coisa existe. Engendrando assim uma nova experiência, inventada. Ligando a velha à nova memória, inventada. Para que quando a tempestade passar a realidade possa ser esta e a outra, inventada. Não esquecerei nunca de guardar o gerador. Alimentá-lo de energia

O Mau do Mau Tempo

Essencialmente tens tido um mau tempo. Um mau tempo constante, continuo nesse teu perpétuo problema de passar o tempo. Não, de facto não tens tido um grande tempo. Pelo contrário, na melhor da melhor das hipóteses tem andado chocho esse teu tempo. Não, nunca consegues ter um grande tempo. Ou então sou só eu que não recorda a última vez que tiveste bom tempo. O que ainda assim não é o pior do teu tempo: aquilo que esperas do tempo - as tuas (péssimas) expectativas em relação ao teu tempo. Óbvio que só pioram o tempo, isto enquanto esperas desesperas pelo bom tempo. O que piora ainda se te pões a pensar mais matutando nesse mau tempo. O que piora substancialmente mais se te pões a pensar que o tempo pode sempre piorar em toda essa conjectura inclinada do tempo. O que não fica por aqui, se te pões a moer por dentro dessas péssimas previsões de quão péssimo pode vir a ser tão péssimo tempo ainda mais péssimo se tornará o já então péssimo tempo.  
Tens de fugir disso, homem, sim, tens de fugir disso, de ti, dar uma curva, fazer uma viagem não sei onde, mesmo a um café da tua zona. Vai-te perder na cidade, homem, talvez isso te faça perder esse teu mau tempo, homem, que essa água te saia dos ouvidos, homem, essa água que sempre te entra nos ouvidos... Mas o processo, inexorável, lá se vai arrastando. Implacável. Se depender de ti, irreversível. Podemos matutar sobre onde realmente te meteste. Posso também recusar compreender. Mesmo quando, de verdade, sabes tu e sei eu, só pensamos a sério no mau tempo quando o tempo está mesmo mau. 

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Outros Parêntesis




Roberto Bolaño tende a agarrar seu universo - escritores, vivências, literatura, poesia, política, obsessões, Chile, México, afectos, terrores, admirações, ódios de estimação, etc, etc - em seus pontos fortes. Sem ilusões, porém, mesmo que a energia, entusiasmo e forças saibam elevar esse mesmo todo às alturas desse mistério salvífico e/ou destrutivo que é a Literatura. "Entre Paréntesis" (Anagrama) mostra esse seu universo vital em mais de 300 páginas de ideias, pensamentos e linhas de força que se encontram também presentes em seus romances (a maioria dos personagens, diga-se). Como se essa escrita sobre escritores e literatura - aqui em ensaios, artigos e discursos - juntássemos pois os pesadelos do mundo contemporâneo e também os sonhos, nesse sentido borgiano do termo, onde o sonho (ou pesadelo), a poesia e a ficção se confundem e emaranham em seus intrincados labirintos. Claro que Jorge Luis Borges iria mais longe em toda a linha entre o sonho e a realidade, mas isso é toda uma outra conversa.

Roberto Bolaño não viveu a fama em vida, nem menos trabalhou em bibliotecas - muito menos na infindável Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Pelo contrário, durante uns bons anos na Catalunha, livros "novos" só mesmo emprestados de amigos ou alugados, claro está, em bibliotecas. Também passava fome. Chegou a viver isolado com seu cão numa casa num bosque, qual eremita desterrado. Seriam os tempos da poesia (a preparar uma séria transição para a prosa) culminados pelo inicio da troca de correspondência com o conhecido poeta chileno Enrique Lihn, que de tanto, não apenas o ajudou a um reganhar de voz e confiança, como iniciou a divulgação da sua obra extraindo-o do anonimado e isolamento num país estrangeiro.

Chegada nos inícios da década de 90, a paternidade fez Bolaño jogar as fichas todas. Romances escritos, uns atrás de outros, em catadupa - romances foram oito, a somar aos livros de contos. Era preciso garantir a sobrevivência do filho, Lautaro Bolaño. Mas não só, com uma rara doença de fígado diagnosticada, o escritor teria a certeza ou quase dos dias contados e cada vez mais comprimidos. Na verdade, é impressionante a quantidade de produção literária possível em tão poucos anos, menos de uma década. Arrisco dizer que os livros já os teria dentro de si - muita leitura, muita escrita, muita vida vivida, muita aprendizagem, muita crise, muita penúria, muito sofrimento, muito trabalho, muita disciplina, muito combate, muito risco, muito pôr-se em causa. Por outro lado, numa de duas entrevistas, as únicas que Bolaño deu a televisões - porventura canais chilenos - este mesmo referiu, que sem estrutura que o sustentasse, seus livros chegariam facilmente às mil páginas. Verdade ou mentira, o certo é que 2666, a sua obra maior, até extravasa a conta. Os tais dias contados é que nem por isso. Essa espera infindável por um transplante que nunca chegava e cinquenta anos de vida e tanta literatura ainda para dar. Uma literatura que, presumo, muita falta faria a este tempo. Uma literatura sem magias de fadas mas de palavras bem marteladas. Esse escrever o que há para ser escrito quando é para ser escrito, como o que se encontra neste poema póstumo, encontrado entre papéis: 

Rechazos de Anagrama, Grijalbo, Planeta, con toda seguridad también de Alfaguara, Mondadori. Uno de Muchnik, Seix Barral, Destino... Todas las editoriales... Todas las editoriales... Todos las editoriales... Todos los lectores...
Todos los gerentes de ventas...
Bajo el puente, mientras llueve, una oportunidad de oro 
para verme a mí mismo:
como una culebra en el Polo Norte, pero escribiendo.
Escrebiendo poesía en el país de los imbéciles.
Escribiendo con mi hijo en las rodillas.
Escribiendo hasta que cae la noche
con un estruendo de mil demonios.
Los demonios que han de llevarme al infierno, 
pero escribiendo.

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A Guiness tem alma. Estou efeito dessa alma. Dá-se bem comigo. Não tem de ser à pressão. Em casa, só mesmo lata ou garrafa. Um trago dessa milagrosa mítica poção cheia de tempos, almas e histórias, e pronto, logo se ouvem as irlandesas músicas; o som das conversas; os tilintares dos copos... Bem-vindos a Dublin, senhoras e senhores. Um concerto no Molloy's, por exemplo. Ou nenhum concerto no Molloy's, ou outro concerto ou nenhum concerto em outro pub qualquer que vos agrade. Há lugar para todos. A Guiness tem sempre lugar para todos. Lugar esse que é agora a minha casa. Pela Guiness estamos sempre em casa. De irlandesa terra neste planeta Terra, medida de todas as alturas, a Guiness vem de sempre, é eterna. Sobreviverá ao Universo. 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sumo Despertador

1 - Como se cheira, à distância...

2 - Está próxima, a palavra, precisamos chegar-lhe depressa, não vá ela perder-se, corremos o risco de pensar que a capturamos, de achar que encontramos o que no fundo perdemos. 

3 - Depende da escuta, concentrada, da visão periférica. Mergulhados, podemos até deixar de ver e ouvir o mundo. Podemos também ser acordados, fisicamente, por esses despertadores incontinentes, as pessoas. 

4 - Estávamos despertos pelo contrário quando (nos) interromperam, o que não era em nada um passatempo. Podem vê-lo pelos dois lados. 

Parêntesis


- La literatura es una máquina acorazada. No se preocupa de los escritores. A veces ni siquiera se da cuenta de que éstos están vivos. Su enemigo es outra, mucho más grande, mucho más poderoso, y que a la postre la terminará venciendo. Pero ésa es outra história.

- Muchas pueden ser las patrias, se me ocurre ahora, pero un solo el pasaporte, y esse pasaporte evidentemente es el de la calidad de la escritura. Que no significa escribir bién, y ni siqueira ese, pues escribir maravillosamente bien tanbién lo puede hacer qualquiera. Entonces que es una escritura de calidad? Pues lo que simpre a sido: saber meter la cabeza en el oscuro, saber saltar al vacío, saber que la literatura básicamente es un ofício peligroso. Correr por el borde del precipicio: a un lado el abismo si fondo y al outro lado las caras que uno quiere, las sonrientes caras que uno quiere, y los libros, y los amigos, y la comida. Y aceptar esa evidecia aunque a veces nos pese más que la losa que cubre los restos de todos los escritores muertos.

- Exiliarse no es desaparecer sino enpequeñerse, ir reduciéndose lentamente o de manera vertiginosa hasta alcanzar la altura verdadera, la altura real del ser. (…) Toda literatura lleva en sí el exilio, lo mismo da que el escritor haya tenido que largarse a los veinte años o que nuca haya movido de su casa.(...) El exilio es el valor. El exilio real es el valor real de cada escritor.

- Los cobardes no editan a los valientes.

- Si tubiera que asaltar el banco más vigilado de Europa y si pudiera elegir libremente a mis compañeros de fechorias, sin duda escogería un grupo de cinco poetas. Cinco poetas verdaderos, apolíneos o dionisíacos, da igual, pero verdaderos, es decir com un destino de poetas y com una vida de poetas. No hay nadie en el mundo más valiente que ellos. No hay nada en el mundo que encare el desastre com mayor dignidad y lucidez.

- Las mentiras y los libros de memórias hacen buenas migas.

- (Philip K.) Dick era una especie de Kafka pasado por el ácido lisérgico y por la rabia. Dick es el Toreau más la muerte del sueño americano. Dick escribe, en ocasiones, como un prisionero porque realmente, ética y estéticamente, es un prisionero.

- No sé qué nos dice, hoy, los trovadores. Parecen lejanos allá en su siglo XII y parecen ingénuos. Pero yo no me fiaria demasiado. Sé que inventaron el amor, y también inventaron o reiventaron el orgullo de ser escritor, siempre y cuando uno sepa meter la cabeza en en pozo.

- Detras de esta muchedumbre, sin embargo, se esconde el único, el verdadero mecenas. Si uno tiene la suficiente paciencia como para llegar hasta allí, tal vez lo pueda ver. Lo que ve probabelmente acabe defraudado. No es el diablo. No es el Estado. No es un niño mágico. Es el vacío.

- No se debe plagiar. El plagiario merece que le cuelguen en la praça publica. Esto lo dijo Swift, y Swift, como todos sabemos, tenia más razón que un santo.
Así que este punto queda claro: no se debe plagiar, a menos que desees que te cuelguen en la plaza pública. Aunque a los plagiarios, hoy en dia, no los cuelgan. Por el contrario. Reciben becas, premios, cargos publicos, y, en el mejor de los casos, se converten en best-sellers y líderes de opinión. Que término más estraño y feo: líder de opinión. Supongo que significará lo mismo que pastor de rebaño.

- Nunca aborde a los cuentos de uno en uno. Si uno aborda los cuentos de uno en uno, honestamente, uno puede estar escribiendo el mismo cuento hasta el dia de su muerte.

P - Que le despierta la palabra póstumo?
R - Suena a nombre de gladiador romano. 

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Roberto Bolaño, Entre paréntesis: Ensayos, artículos y discursos (1998-2003), Anagrama, Colección Compactos



Nunca sabes o que queres dizer até o escreveres.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Espaço-Tempo

Com espaço marca-se o tempo, com tempo marca-se o espaço. Partes do mesmo corpo e nunca separadas, nascidos momento-matéria, o mesmo organismo. Einstein despertou-nos para a evidência: Espaço-Tempo, entidade única, indivisível, indissociável, inseparável. Penso no tempo a trabalhar o espaço como todos os átomos do meu organismo - mais que todas as estrelas deste Universo ou grãos de areia de todas as praias do mundo - a interagirem simultâneos enquanto trabalho estas poucas linhas escritas. Posso pensar em todas as linhas escritas.  

quinta-feira, 31 de julho de 2014

21.

No mar fartei-me de nadar e de andar. Nas gélidas águas da costa alentejana deste ano (sim, sim), coisa que não deve haver desde há eras, como diz Neil DeGrasse Tyson, e é difícil de entender, melhor foi o corpo dentro de água, a cabeça fora ao nível do mar em meio êxtase flutuante, brisa marinha na cara e pescoço, e a beleza disto tudo sempre a despertar. Terrence Malick nunca esteve aqui nem na Costa Vicentina, de outra forma já teria filmado. É um sentimento de certeza que eu tenho. Como o encaixe perfeito que teriam sido os Pink Floyd fase 69-71 no enorme que era o cais antigo de Vila Nova de Milfontes, sob o rio, a foz, o mar, uma praia em frente, detrás a vila, do outro lado mais Rio Mira a preparar-se para serpentear ao passar da ponte, a serra sempre além... Seriam os sons de eternidade de Echoes, entre outros, a juntarem-se à "outra" eternidade nestes pontos descoberta a quem venha sofrer o maravilhamento. A eternidade que sempre se manifesta e nós que estamos sempre de passagem. 

NON


Até as falhas nos actores, nos diálogos e os planos e tempos desnecessários parecem fazer parte do cardápio. Manoel de Oliveira paira acima de todo o acidente. Oliveira incorpora, absorve em tudo, mesmo nos erros tudo no filme é sublimado. Pouco importa o redundante e desnecessário de certos momentos, a câmara impõe o desassombro de outros momentos: das interpretações, de certos diálogos, de toda a mise-en-scène desse cinema de representação pura e dura, genuíno em todo o artifício. Cinema para quem o sabe receber, para quem o vê, para quem o merece. 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Novas Parcimónias

Hora e meia (não muito mais) de exercício físico e depois duas (não muito mais) cervejas das saborosas e bem calibradas, eis uma das melhores sínteses fisico-químicas possíveis ao ser humano. Outro dos grandes motivos porque explodiram as super-novas. 

Primeiro há os que escrevem. Depois há os que escrevem o que escrevem.

- O Facebook tem uma saída: a rua.

- Não viver como desculpa para não escrever. Não escrever como desculpa para não viver. Não escrever sem escrita, não viver sem vida. 

- Nem doping, nem controlo anti-doping. 

20.

A vila (será já cidade?) está cheia. Talvez devesse marcar férias mais cedo. Lisboa, porém, dizia-me o contrário, e contra factos não há meteorologias. Então ajustei sonos em três horas mal dormidas. Bendita natureza que me ajusta estas coisas. Agora estou aqui para o sol, para o mar, para os livros, para as escritas (?), com este vento que me leva a ficar na toalha mais tempo que o habitual. Sinto nisto outro ajuste natural pois leio Cem Anos de Solidão, e de facto, é preferível deixar tudo o resto a voar... Outra experiência é ler Sophia frente ao mar, assaz curiosa experiência, já a tinha tido em casa. A lá voltarei, basta ir à estante. Agora uma senhora tira uma selfie. Cálculo que seja para apanhar o mar-horizonte, a foz do rio, a praia em frente, as pessoas (?). Desajeita-se, aposto que é para pôr no facebook. Os piratas já não voltam, as muralhas são agora uma residencial. 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

19.

Pela primeira vez na vida escrevi um sonho completo. Um sonho completo  - que na realidade é segmento de sonho mais longo - com principio, meio e fim. E como uma boa história - mesmo que uma história má -, esta inicia-se em andamento: esse autocarro onde me encontrava. Escrever o sonho foi muito importante. Ajudado pela escrita, apanhei sua coerência e visão intrínsecas, também sua unidade, forma e mais real conteúdo. Escrevendo, arrisquei pois a literatura desse sonho. Conto ou mini-conto, foram 560 palavras de rajada. Coisa curta, porém, pormenorizando cada aspecto, serão mais, não muito mais, a não ser que comece a inventar, a usar o sonho como ponto de partida. Ora assim recordo que o velhote barbudo que entrava a reanimar o condutor de autocarros (não vou contar o que aconteceu) no sonho era igual ao do video do The New Pollution de Beck. É óbvio que o sonho veio antes do vídeo. Aos anos que eu não ouvia essa canção. Também o sonho veio antes da internet, é preciso dizê-lo, mas por este andar talvez um dia alguém o esqueça. Mais importante é que nesse sonho, megalomanias à parte, senti-me mais perto de Borges ou Bioy Casares a escreverem certas páginas, esse lado de ente-conto, usando as palavras de Roberto Bolaño. Então saí de casa, tinha de ir ao super-mercado, e tive logo três encontros fortuitos. Um de uma constatação, outro de uma confirmação, o outro de uma dúvida. O primeiro, de um desconhecimento; o seguinte, de uma amizade; o final, de um conhecimento. Este último é o que tem mais dúvidas e áreas de profundidade, para não dizer de perigo. Na amizade, pelo contrário, estamos sãos e salvos. O do desconhecimento, pois, já não me recordo. 

domingo, 11 de maio de 2014

18.

Acordar com a Canção de Lisboa de Jorge Palma na cabeça é coisa que promete pouco. Do mal o menos, irei escrever. Na verdade estou mesmo a escrever agora neste bloco apanhado da mesinha de cabeceira. De certo só mesmo aferir da chama com que me deitei numa noite de palavras decididas. De incerto nada remanesce e arrasta a areia e prova-me a caneta que acordei desafinado. Então subo o volume ao grande Jorge Palma, trazido da melancolia da noite para o dia, o que também é certa decepção de mim próprio: penso em todas as palavras que não li subtraídas ao tempo que as tive para ler. Penso em marimbas no fundo da cabeça que a páginas tantas se nos oferecem no extraordinário Suicidas de Henrique Manuel Bento Fialho. Vá lá que aqui está tudo intacto, nem que seja na aparência. Sei que houve resistência para a avidez das tropas inimigas, hoje mais ávidas que nunca. A gente perde o rasto aos colegas do recrutamento obrigatório. Não me lembro de haver amigos na trincheira. 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

17.

- Levar-se a sério é sinal de avanço. Não se levar, sinal que se avançou. 

- Devagar se vai ao longe, à velocidade da luz o tempo pára. 

- A liberdade precisa das mãos, as mãos precisam da forma. 

- A falsa amizade? Uma desculpa para, um encolhe-te, um prende-te, um as coisas não podem ser assim dessa maneira. A dependência. A pressão alta e a marcação ao homem e à zona. As almofadas. A maquineta de jogos de manipular. A carapuça das aspas acima da palavra. 

Carne para Canhão

Não deixa de ter semelhanças a inconsciência que nos atirou para esta absurda austeridade e perigosa divisão da Europa entre norte e sul, com a inconsciência que precipitou os acontecimentos na Praça Maidan, usando dos piores defeitos da propaganda para esconder o mais puro fascismo doutrinário e um Golpe de Estado contra um governo legitimo e democraticamente eleito. 
De tudo o que eu vi na altura em entusiasmados noticiários, nada mais recordo que a exibição das colossais riquezas à base do roubo, sim, de um governo ladrão e corrupto. Com os palacetes e demais iguarias ficávamos conversados: o governo não só era corrupto, era mais que corrupto, vergonhosa obscenamente corrupto, e a golpada até nos parecia legitima, enfim. Era o povo e tal e nós isso mesmo: burros a olhar para o(s) palácio(s). Problema veio depois. Outros também quiseram, com a verdade - que como Nietzsche dizia, não é propriamente uma velhinha indefesa - de o quererem muito mais legitimamente, fazer também a sua revolução. A começar com a Crimeia, que não foi há dez anos. O resto da história todos já conhecem, ou melhor, vêm conhecendo, de preferência não pelo José Rodrigues dos Santos, que teve na Ucrânia um dos piores e mais parciais exercícios jornalísticos de um enviado especial que eu vi em vida. Agora, enfim, agora é como alguém do mais credível escreveu:«Estamos dependentes da sensatez, ou falta dela, da Rússia». O que até pode ser traduzido por um agora aguentem-se à bomboca. No que é melhor não ser ingénuo. Vou até mais longe, acredito que tal como fomos atirados para esta crise pelos mesmos que tudo dela lucram, poderemos ser atirados para a guerra como povos inteiros antes o foram em tempos de crise. Podemos sempre confiar que a razão estanque a hemorragia das feridas abertas em tempo recorde - e as marcas das feridas têm sido deveras reveladoras. Problema é que a razão não tem sido pródiga em qualquer das partes interessadas. Falemos nos Estados Unidos, é desnecessário de tão óbvio enumerar todos os seus interesses económicos, financeiros, políticos e geoestratégicos (já para nem falar no "military-industrial complex" que só não vê quem não quer ver) em todo este absurdo. Quando a Rússia é o velho patriotismo do Império Russo e Vladimir Putin é Vladimir Putin. Quando a União Europeia é toda esta ordem sem ordem às ordens de Berlim. Talvez eu ande mesmo desmemoriado, mas agora assim não me recordo de nenhuma guerra justa que meta estas gentes e estes povos desde a Segunda Guerra Mundial. Causada por esse Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães que era nazi e fascista e tudo, não era? E o fascismo, nazismo, ou pelo menos, vá-lá, o mais feroz nacionalismo também hoje é parte deste incendiário ilegítimo governo da Ucrânia, não é? Da Europa-América até já aterrou o FMI em Kiev (como aconteceu no Iraque, nunca vi comentador e/ou analista falar nisso, os comentadores e/ou analistas nunca falam na Doutrina de Choque), não foi? Os Estados Unidos e a União Europeia só estão mesmo preocupados, seriamente preocupados, com a democracia, a justiça e a integridade territorial da Ucrânia, não é? Problema que tudo tenha apenas começado

sábado, 3 de maio de 2014

Maio Maduro Maio

Foi instrutivo, não intrusivo. Estavam lá os grupos, grupelhos, fainas, arquitecturas, engenharias. Uma pipa de massa à base de fígado. Uma boa dose de confiança. Também foi fácil dirigir-me à verdade, era só contornar algumas pessoas. Sujeito a quem se pedem predicados, aos outros eu sujeitos só mesmo trabalhando em equipa e/ou contextos de amizade. Géneros de coisas das quais não se pede e só mesmo por acrescento. Nada de guerras, só textos. Com uma população a desaparecer por falta de alimento ao espirito, cheguei ao ponto mais ocidental de mim próprio, logo ali desatei a ler. Já não tinha nem tropas nem aldeões e foi difícil  reiniciar-me com pedras a atacar o estômago. Mas ganhei fôlego. Livros, minha intuição tinha-os fisgados mas foi como conhecer um país estrangeiro que sabíamos extraordinário quando ainda não o tínhamos vivido. Tomos na desordem ordenada como um atelier de Picasso. Esquecido perdido nem reparava no trabalhado e por trabalhar. Detesto o nome laboratório de ideias, é feio vulgarizar assim a palavra através da ciência. Com o seu quê entre o jargão de telejornal e o de criativo publicitário que em tudo me irrita ao ponto do deixem-me em paz. É como o intragável presunção de inocência que não é coisa com coisa e tudo reclama e tudo acusa. Quem se terá lembrado de semelhante ideia? Horas e dias de reflexão e fugas e batalhas contra essa sombra desconhecida só podiam ter dado este resultado: o problema não é meu. 
Seja, certos territórios, estranhas ilhas desconhecidas, estão disponíveis atrás do arvoredo. Desancorar, assaltar armadilhas. Partir do sentimento, não tanto do aperfeiçoamento. 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

16.

Inspirado, com as palavras prontas a chegarem sabe-se lá de onde, Henry Miller tinha esse hábito, antes de começar, dizia:«Sou todo ouvidos.». Então escrevia. A inspiração passa a palavra. O escritor só precisa criar condições necessárias à escuta. Limpar o terreno da vidinha. Buscar um género de neutralidade aparente (que de neutro não tem nada). A disponibilidade não se quer indisposta, Henry Miller tinha esse hábito. Dizia que quando não se consegue criar sempre se pode trabalhar. Então é limpar o terreno, deixar tudo a postos. Assim sempre se varre muito sábio conselho da escrita criativa. 

15.

Fosse um duelo, terias de tirar esse cinismo alegre que te serve de escudo. De qualquer forma, ficarias mais leve. Sempre tão dependente das pessoas, das pessoas e dos estímulos das pessoas... Ser um agarrado, dependendo do grau, tem sempre um lado manipulador. Constato o problema, esse calcanhar de Aquiles. Um calcanhar daqueles, diga-se... De vez em quando, ao Sol (que tudo reflecte), fica aí tudo à mostra. Um desses planos bem melindrados.

14.

Mesmo antes de o beber, o mau café já se me tinha atravessado. Vinha do leve cheiro a queimado e de uma mais fina textura que algum telescópio sensível a olho nu nos mostrasse. Qual censor próprio de alarme, avisava que me ia dar mal. Bem que telefonaste, fica o curioso agradecimento. O tempo passou. O café esfriou. De nada valeu nem tê-lo tocado. Acabada a conversa, meu coração mais parecia um tambor africano num ritual da tribo; a desidratada boca a secura de um deserto; um blitzkrieg entretanto preparava-se nos intestinos. O mau café tem um feitiço. 

segunda-feira, 31 de março de 2014

Estado do Tempo

Meu tempo não é o tempo da minha meteorologia. O tempo da minha meteorologia tem dias, tem marés e tem estações. Meu tempo é outra coisa. Não mora em estados de alma. Não vive e sofre as divisões e uniões, concórdias e indecisões, ilusões e desilusões. Meu tempo não tem guerras nem tempestades, nem nunca lhe cairá asteróide em cima. Meu tempo é um quieto caminho. Segue o seu curso, infinito, infinito até que acabe. E quem diz curso diz discurso. Leis que segue conforme, nada em disforme - nem um átomo fora de sua vontade, regra exacta e disciplina. Meu tempo é pois meu tempo. Um tempo com tempo. Tem de ter tempo. É tempo. 

Questões de Interesse

Isso dos interesses comuns pode ser um rol de problemas, escondem o interesse, escondem o problema. 

quinta-feira, 13 de março de 2014

A Máquina de Hemingway

É perigosa auto-consciência. Faz curto-circuito na máquina criativa. Bloqueia certo mecanismo que devia estar virado para fora. Ou dito de outra maneira, a máquina bloqueia se se põe a pensar que é máquina, coitada. Hemingway tinha razão quando dizia que there's nothing to writing etc e tal, tivesse pensado demasiado nisso e talvez nem tivesse saído da primeira frase do valente “The Killers”. O homem é a sua própria máquina de escrever. 

A Nota Dissonante

Sob o ar conforme, consoante e relaxado recebe à chegada meu ar duro, batido e comprometido. Até já se deu o contrário, mas é sempre igual esse estranho contacto de diferentes tempos musicais entrechocados como dois corpos estranhos de numerosos lados incompatíveis. Se houvesse nisso alguma culpa diria que fui eu que entrei como um subterranean home sick blues em meio de um minimalismo repetitivo a la John Cage. A música até que nem era má. Má é esta dissonância em confronto com o diapasão dos dias. Pior mesmo é quando do silêncio apenas se ouve a distorção.