segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Um espelho cá fora


Ontem tive um daqueles longos sonhos inquietantes. Era Verão, a praia uma maravilha, sentia-me na Zambujeira mas mais parecia Porto Côvo - eu que "sou" de Vila Nova de Milfontes - quando subitamente um avião aproximou-se em queda livre e miraculosamente conseguiu amarar. Foi um tremendo alivio que logo foi desaparecendo ao reparar que todos continuavam na sua a gozar a bela da praia. Nem o nadador salvador se incomodou. Tive de sair dali afim de pedir socorro (no sonho não deviam haver telemóveis). Era na Costa da Caparica e nenhum telefone funcionava. Houve então quem me surgisse a acudir: "compreendo, mas agora já não vale a pena. Já se afogou tudo de certeza”. Aí acordei. Lixado com a cama em que me deitava.  

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Unending Ascent



An Ending (Ascent), do album Apollo: Atmospheres & Soundtracks de Brian Eno é dos sons mais estranhos e belos que se podem ouvir. Tendo algo de etéreo, ao mesmo tempo terreno e cósmico, com uma aura única de indecifrável mistério. A admiração e comoção que causa vê-se quantidade de vídeos e comentários no You Tube e não têm rival à altura – eu nunca vi – ainda para mais num artista desconhecido das grandes massas. 
A primeira versão que me foi dada a ver já lá não está talvez por ser feito de campas e cemitérios reflectindo talvez demasiado o lado post mortem de An Ending (Ascent). Eu pelo contrário acho que é música sobre a vida. Claro que há gostos com versões para tudo. Na Lua, na Lua com a sonda Apollo, no mar ao pôr do sol, em imagens da NASA, em simulacros chill-out, na simetria do espelho, no Afeganistão, na floresta, à beira estrada, à beira neve, à beira rio, ao mar, a navegar, em arquitecturas, nas nuvenschorai arcadas do violoncelo, em fotos editadas a gosto, no trânsito a cores, no trânsito e preto e branco, a la National Geographic, em remixes, em esquisitices, no cinema, em mais cinema, em desenho, com a Terra de perfíl, também assim, em modo trance, num sujeito que descobriu como se faz no sintetizador e claro que capa do albúm. Mas há mais, muitas mais, e vão continuar a aparecer mais.




Adenda: no vídeo acima vê-se parte da Península Ibérica e entrada do mediterrâneo, consegue-se ver o Algarve e a toda a costa alentejana. Parece o Estuário do Tejo em ponto gigante. 

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Carlos


A partir da vida imaginada do mais famoso terrorista das décadas de 70/80, Carlos de Olivier Assayas procura dar-nos a noção dos vários tempos, modos e espaços, mesclados com a crueza e a urgência da acção letal. Somos transportados em países, cidades, ambientes e pessoas, pontos de passagem de um terrorismo a larga escala secundado por aeroportos, alfandegas, hotéis, campos de treino ou esconderijos, tudo locais onde as línguas faladas se misturam como produtos dum mesmo mercado. A escolha do actor Edgar Martinez encaixa aqui que nem uma luva – também ele é venezuelano, também ele teve um percurso de vida que o pôs a falar fluentemente várias línguas, cinco: espanhol, francês, inglês, alemão e italiano. 
O real e verdadeiro Carlos, o Chacal, de nome Ilich Ramírez Sánchez, a cumprir pena de prisão perpétua em França, já veio dizer que o filme é uma "manipulação, uma mentira voluntária". Mas não será essa mesma a forma mais correcta de recriar uma vida que trabalhou o seu mito também em manipulações e mentiras voluntárias? Onde uns o apontam como um combatente revolucionário e outros como um terrorista sanguinário. Como poderemos nós alguma vez ter toda a certeza? Fiquemos pelos sonhos, vencidos, e pelo irremediável, padrinho da incerteza e do desconhecimento. E pelo filme, que é muito bom.


sábado, 19 de novembro de 2011

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Notas de um Facebook (II)



Tirando alguns amigos que perdi o rasto, o meu Facebook é mais sobre quem não conheço pessoalmente que outra coisa. Sigo gente que admiro, estimo e com quem aprendo e o feed de notícias tomo como uma espécie exótica de Google Reader. A ideia em si de uma pessoa instalar-se num computador e dar de bandeja o seu tempo livre a não fazer mais que continuar a conversa lá de fora é algo que me transcende, mais a mais porque a conversa é sempre a mesma e as excepções não vão parar ao Facebook. Depois ainda há os "amigos" da vidinha - escola, emprego, cercanias, arredores – que nos custaram ter de aturar no dia a dia e anos depois aparecem ali a luzir num pedido de amizade pendente. Queres ser meu amigo? Outra vez? 

O que me anima ainda são os lembretes non sense. Ver por exemplo fulano - tipo interessante, fixe, vivido, saudável - a ser alvo de alertas tipo "sugere-lhe amigos". Ver o meu pai - que quando começou criou duas páginas - aparecer em "pessoas que talvez conheças". Humor esse que é cortado de vez em quando com a cara de um João Duque, José Lello, ou José Luís Peixoto, entre outros que tais. Sem necessidade nenhuma. 

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Mailer surfava as ondas gigantes



"What ruins most writers of talent is that they don't get enough experience, so their novels tend to develop a certain paranoid perfection.
For example, how much of the words of the history that's made around us is conspiracy, how much is simple fuckups? You have to know the world to get some idea of that."

"You can't change a single word. The best short stories are built on this premise."

"Some of my best ideas come because i haven't fixed my novel's future in concrete. Once you know your end, it's disastrous to get a new idea."

"The act of writing is a mistery, and the more you labor at it, the more you become aware after a lifetime of such activity that is not answers which are being offered so much as a greater appreciation of the literary mysteries."

"Nothing lifts our horizons like a piece of unexpected luck or the generosity of the gods."



Norman MailerThe Spooky Art - Some Thoughts on Writing 
(Random House / New York, 2003)

sábado, 12 de novembro de 2011

Estatísticas



"Há vários nomes para o que aconteceu na Alemanha e na Polónia nos primeiros anos quarenta. Holocausto, Shoah, Vento de Morte. Em romani chama-se Porreimos, Voracidade. Não há nomes para o que aconteceu na União Soviética entre 1917 e 1953 (embora os Russos refiram, totemicamente, “os Vinte Milhões” e a Estalinstchina, o tempo de Estaline). Que havemos de chamar-lhe? A matança? O Fratricídio? O Menticídio? Não. Chamar-lhe Zatchto? Chamar-lhe para quê?"

"Foi durante o período da Colectivização que a delação deu o grande salto em frente. Nas aldeias os camponeses mais pobres eram incitados a denunciar os mais ricos. “Era tão fácil meter um homem dentro! Explica Grossman. “Escrevia-se uma denúncia, nem sequer era preciso assinar”: Pelos meados dos anos trinta, quando o terror se voltou para as vilas e cidades, a denúncia era louvada na imprensa como “dever sagrado de todo o bolchevique seja ou não membro do Partido”. 
Pode-se denunciar alguém por medo de que essa pessoa nos denuncie; pode-se ser denunciado por não denunciar o bastante; o único desincentivo à denúncia era a possibilidade de ser denunciado por não ter denunciado primeiro;"

"Se, como é corrente dizer-se, o poder é uma droga; então há casos em que a droga deixa de dar efeito a não ser que se aumente a dose – no caso exponencialmente. Para Estaline, o poder era coisa dos sentidos e das membranas. E ele procurava invariavelmente o limite superior. A Colectivização terminou quando os camponeses foram todos colectivizados. O Terror-Fome terminou quando já não restava ninguém para semear a colheita seguinte. O gulag continuou a expandir-se até parecer que ia rebentar. O Terror prosseguiu até mesmo as prisões temporárias, as escolas e as igrejas estarem todas cheias e os tribunais em funções vinte e quatro horas por dia."

"Toda a gente sabe de Auschwitz e Belsen. Ninguém sabe de Vorkuta e Solovetski.
Toda a gente sabe de Himmler e Eichman. Ninguém sabe de Iejov e Dzerjiinski.
Toda a gente sabe dos 6 milhões do Holocausto. Ninguém sabe dos 6 milhões do Terror-Fome."


Martin AmisKoba o Terrível [Lisboa: Teorema; tradução de Telma Costa; 2003]



Fica uma amostra do excelente Koba o Terrível de Martin Amis que li dum trago (bem amargo). Para muitos que não conheçam ou tenham lido nada sobre o período 1917-1953, tal horror talvez não passe duma estatística (*). Há aspectos em que Estaline conseguiu ir tão longe como Hitler, não os reproduzo aqui. Mais: é quase unânime entre historiadores que tivesse Estaline vivido mais um ano e também os judeus na URSS teriam sido exterminados. De castigo já tinham morrido 5 milhões de ucranianos. Estatísticas.




(*) - "A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística." (Estaline)


terça-feira, 8 de novembro de 2011

Roubar a Tchekov


Tchekov é uma fonte inesgotável. Tem aquela coisa de mestre mais à frente que os autores da frente do presente e do futuro e nos leva a achar que tudo o mais é reciclagem. 
Sei que hoje andava na rua a tentar apanhar contos de Tchekov. Mas não vi nenhum, ou não tive talento e engenho para isso. Com a televisão foi mais fácil, num desses programas forum em que o tema devia ser a crise, uma senhora idosa quase chorava ao telefone mais ou menos isto: “ou compro os medicamentos ou passo fome, o meu dinheiro não dá para as duas coisas. Sofro de pedras nos rins, sempre trabalhei, trabalho desde os 9 anos...”. Fez-me lembrar uma martelada que levei ontem à noite:
“ Os olhos de Iona percorrem aflitos as pessoas que passam pela rua, como se procurassem, entre os milhares de rostos desconhecidos, alguém que esteja disposto a escutar as suas mágoas. (...) A tristeza cresce então dentro do seu peito, abafa-o, enorme, infinita. Se lhe abrissem agora o peito e ala se espalhasse, saisse cá para fora, inundaria o mundo inteiro.”
Já os Medinas Carreiras desta vida, sempre aviados e afiados com as mesmas  inevitabilidades fazem-me mais lembrar a descrição abaixo:
Zapoikin está sempre pronto para discursar, em qualquer hora ou em qualquer estado: com sono ou em jejum, a cair de bêbedo ou cheio de febre. As palavras brotam-lhe da boca com extrema fluência, como um jacto de àgua que jorrasse de um cano; e no seu escolhido vocabulário, há expressões capazes de comover uma rocha, e, em começando, é difícil fazê-lo parar; já tem acontecido, principalmente em casamentos, ser preciso chamar a polícia para conseguirem que se cale.”

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Aquele Dia


Um dia banal pode também ser o ponto onde tudo se condensa. Em Paris de Chistophe Honoré gira em torno duma família à volta da decepção amorosa de um dos seus, regressado a casa e a ressacar uma relação amorosa falhada. Os restantes membros são o irmão mais novo, juvenil e mulherengo, o pai divorciado - um dos melhores pais chatos e repetitivos que tenho memória no cinema - e a mãe que vive noutro casamento. Falta ali a irmã, que se suicidou aos 17 anos com uma depressão.
A riqueza humana, a ternura, as parábolas juvenis e o tom de comédia ligeira do filme atenuam e modelam o seu efeito dramático, sugerindo o mais importante: o que fica, o que (sobre)vive. Porque há sempre um dia entre dias em que nós, protagonistas ou testemunhas da encruzilhada, também acabamos por nos encontrar. Este belo e discreto filme é um desses dias. Em Paris encontra-se na sua passagem. Completa-se no seu círculo.