sábado, 29 de agosto de 2015

Sopa de Pedras


- Se a esquerda me cerca entre a espada e a parede, então sou de direita, pela esquerda.  

- Ouvido em Sete Rios:«antigamente tínhamos amigos imaginários, agora, graças ao facebook, imaginamos amigos...»

- Perguntaram-te de certeza se eras tu. Responderam-me de certeza que eras tu

- Exactamente, Tarantino:«They might be a drag for a moment, but after that moment is over, it always ends up being gasoline to my fire.»

- Por eles melhor nem apareças. Nunca digas nada. Já o viste, aliás. Muito vulneráveis, vulneráveis, mas depois espetam-te um longo ferrão pelas costas. Iam agora impressionar-se com um elefante numa loja de porcelana, do mais quando não há loja, não há porcelana, e o elefante não passa de um brinquedo comprado num qualquer palácio da literatura. 

- Nunca se encararam como irmãos, até agora. Mas eis que tem gente que espera que a birra dure a vida inteira. Minando os caminhos. A vida inteira.

- Portugal é um alçapão. Há muitos, há piores, mas é um alçapão, uma armadilha, muitos dos nossos grandes a quem tanto devemos fatalmente chegaram a acreditar nisto, tramaram-se. Tivessem ficado bem longe... Que em Portugal, bem sabemos, se se é ignorado, é se ostensivamente ignorado. Porquê? Suspeito de um filho de um jesuíta.  

- É necessário treinar a primeira de mão a partir do momento em que as ideias nunca mais param de pular umas sobre as outras. Não nos podemos dar ao luxo - nem o luxo se pode dar a nós - de queimar tempo com esse criado que nunca foi criado na vida. Depois há o José Cardoso Pires

- BOLAÑO«La literatura se parece mucho ala pelea de los samuráis, pero un samurái ni pelea contra otro samurái: pelea contra un monstruo. Generalmente sabe, además, que va a ser derrotado. Tener el valor, sabiendo previamente que vas a ser derrotado, y salir a pelear: eso es la literatura.»

- Sair de um casulo, palmilhar terrenos, ganhar palmos, jardas, percorrer baldios, aguentar porradas.

- Fosse aluguer de afectos,  ganhava à comissão.

- Vai pelo frio, vai, arrefece à vontade, por quem sois, mas depois, depois, depois, olha, não te estou a guardar lenha para o Inverno...

34.2

Nesse tempo em que lias, lembras-te? Ou era da escola? A mim até deu jeito, apanhaste-me a jogada de um chico-esperto, essa cena que vinha decalcada de Os Maias, essa cena, lembras? Ou desses tempos em que sabias melhor quem era o Zizek, que eu precisei relembrar-te a partir de um cappuccino que bebias. Ora pois, enfim, é como esse teu antigo prof que calha ser um dos meus colunistas preferidos. Faz parte da tua realidade, quem diria? Mais que da minha. Falas nas aulas, no estímulo, no interessante, uma maravilha, imagino, mas há quantos anos não lhe lês um artigo? Mal sabes que estão à borla na net, posso contar dez anos desde a última vez que compraste um jornal. Certo? Não, agora não, estou a falar com as minhas amigas. Todo o tempo? Não. Não? Não. 

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Adenda




Das leituras melhor ler aqui. Ou aqui.



A experiência interior é doravante interdita, pela sociedade em geral, e pelo espectáculo em particular. Falava em assassino. O que eles chamam imagem está a tornar-se o assassínio do presente.


Só os seres livres podem ser estranhos uns aos outros. 









Ingenuidade On The Record

É bom ter escrito num caderno do antigamente toda a minha passada ingenuidade que eu gosto da minha ingenuidade bem passada. Nem vale a pena passar a limpo. Está aqui. À minha vista. A comparar o que veio a seguir. Servido como prova testemunhal lírica. És um lírico, diz assim. Que assim fica. Que assim fica bem. Dividido o quintal em duas partes. 

terça-feira, 25 de agosto de 2015

+ -

- O insuportável cinismo de hoje por vezes é quase incomportável, irrespirável, absurdo. Mas pior mesmo é seu péssimo aspecto, pestilento, de matar tudo à roda, mesmo assim, coitados, mal se aguentam.

- A vulgarização, a relativização, o fingimento, o lado onde durmo melhor, a falta de reciprocidade, a politiquice pessoal, a falta de sentido de lealdade, de risco, etc. Tudo ajuda: separa-se o trigo do joio, dá-se consistência ao estar nas tintas - nada de deitar fora, até pela qualidade da tinta.

- Só perdes o teu tempo fazendo-me perder tempo. 

- Não podemos escolher o momento. Não é possível medir o incalculável.

- Para reescrever, mais que para escrever, é preciso o cérebro bem ligado. É necessário destrinçar a asneira do pormenor. O motor de captação precisa muita luz, gasta muita energia.

- Lá porque nunca te julgue não quer dizer que te aprove. Lá porque a sentença é não culpado, não quer dizer que sejas inocente. 

Bolito


1 - Compra a droga barata para a vender estupidamente mais cara. Lucríssimo garantido. 4000%? Fosse assim tão simples "bastava" não haver escrúpulos. Não, condição primeira: é preciso não haver praticamente nada que não se seja capaz de fazer, passo necessário para se singrar na jogada milionária instantânea e não ser tragado pela inumana mortífera máquina trituradora. Quatro mil mortes por ano em Ciudad Juárez? A CNN diz que são cinquenta mil só em seis anos, no México. Sobretudo mulheres, na sua maioria jovens, o que dá uns bons milhares de adolescentes raptadas nessa ficcionada Santa Teresa de 2666 de Roberto Bolaño, mas bem real Ciudad Juárez, só para a incomensurável fortuna ainda juntar outro milionário quinhão com esses snuff films e não haver mais palavras descreverem o horror. 
Fosse "só" a maldade pura da besta humana. Não, há um sistema que a alimenta, há um sistema que dela se alimenta. Citando esse ficcionado Westray (Brad Pitt) pela pena bem real e precisa de Cormac McCarthy: pensa nisso quando snifares a tua próxima linha de coca.  

2 - Falemos então no lucro. Onde ele começa, na Colômbia e cercanias. Primeiro é preciso afastar a concorrência. Para pôr lá o dinheiro é preciso um exército, um álibi, ou um especial conhecimento, ou uma empresa, ou se não ter nada a perder, ou ser-se cego das ideias, ou ser-se um doido varrido... Ou então é pagar aos pontos, ou seja, aos subornos, suborno por suborno, a profissionais, o que sempre é menos arriscado. As águas estão cheias de piranhas, crocodilos, também haverá lobos em pele de cordeiro. Voltemos a Westray: Soubesses quem está metido nisto ficarias muito surpreendido, muito surpreendido...

3 - Tudo porque surgiu na jogada um (Michael Fassbender) relativamente civilizado e charmoso aventureiro endividado de gostos caros, razoavelmente bem sucedido e cheio de auto-confiança a tentar fazer a sua abordagem ao mercado. Tão brutal automático instantâneo colossal lucro servem-no para acreditar que vale a pena correr o risco. É avisado, zomba do aviso. Sente-se um ser nobre (e superior) que se está a propor a uma empresa, a uma aventura, com uma ideia vaga do mal mas sem fazer do mal a menor ideia - do mal absoluto muito menos. Desconfia-se que esteja à altura, é prevenido que não o faça, o que o desconforta. Está nessa, claro que está nessa. A fasquia inebria, encandeia a vista, como o mais raro dos diamantes que compra a um joalheiro judeu em Amesterdão (Bruno Ganz). E no entanto... É preciso manter as aparências, o trabalho legal de advogado. Pensa nos mundos separados, nem faz ideia de quem seja a madre de todas las madres. 


4 - E como a Terra é um organismo vivo, lá no mar alto, ou nem tanto, lá se vai formando o tsunami, pois que (no) entretanto o chão tremeu. Tremeu? Foi, nem se sentiu. Valha a verdade que tudo não passou de uma coincidência, nem sequer houve descuido. Coincidência, palavra que não existe no narco-dicionário. Westray: «Eles não acreditam em coincidências, já ouviram falar delas, só não viram é nenhuma». Ora bolas. Nem a volta de aquecimento está dada e já se está fora da corrida. Pior que isso, muito pior, talvez até já se possa pensar no célebre abismo de Nietzsche como um sonho impossível comparado a um buraco negro onde da gravidade nada escapa. Não serve de nada. Westray: «O problema maior não é caíres em desgraça, é quem levas contigo...» 

Lágrimas pelo grande amor (Penélope Cruz), de nada lhe valeram os diamantes, capturada que foi para a produção paralela industrial e milionária do horror que acaba com milhares de mortas numa lixeira, sem cabeça, como todas aquelas milhares de jovens e adolescentes raptadas em Ciudad Juárez. 

5 - Para quem ainda não sabe ou adivinhou, este texto vem no seguimento do tão válido como execrado "The Counselor" de Ridley Scott, vomitado por incapazes em todo o seu pós-moderno cinismo de sequer nomear a urgência do interesse em questão. Não, não é nada bonito e agradável de se ver. Pelo contrário. É se como que atropelado, e o crítico de pena triste acha-o um acto rude, uma desfaçatez, que não vinha nada sinalizado. Como li algures, não consigo agora localizar onde, "The Counselor" esperará a morte do realizador e quiçá mais uns bons aninhos para se tornar um filme de culto. É só umas tantas coisas do agora expirarem o prazo de validade. 

sábado, 22 de agosto de 2015

CTRL F

Um dos efeitos colaterais das novas tecnologias - e eu nem devo ir muito por ali, que sou um tanto ou quanto cada vez mais anacrónico - para um desorganizado como eu, é a inerente insistência no comando Control F em cada palavra de um texto e/ou qualquer esconderijo que seja do meu computador. Cá está o problema colateral, voilà: saiu do computador. Por exemplo agora, em que não encontro o raio da chave de fendas, coisa que nunca uso, como também nunca me aconteceu o estore da sala subir todo para dentro da caixa... Eu não pedia mais nada, renunciava a qualquer uma de todas essas únicas tecnologias, a qualquer tablet ou smartphone ou kindle que nunca tive, mas um CTRL F, um CTRL F acoplado às coisas da minha casa, isso sim, seria verdadeiramente entusiasmante, algo do absoluto extraordinário. Haja alguém que me ajude. A primeira parte da obra aliás já está feita, inserida que foi na minha cabeça, qual chip enxertado pela sua própria realidade. Verdade é que está lá. O outro dia abri o armário da cozinha à procura de um anti-inflamatório e a primeira coisa que me perguntei no pensamento sonhado mais rápido que a realidade, foi: o que é que se passa com o CTRL F? Tinha bem escrita a palavra Flameril...

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

36.

«A casa dele não tinha nada, só água e vinho engarrafados, velas e candeeiros a petróleo. A casa de banho era um género de torre, lá fora, alta, parecia a torre de vigia de um forte medieval, ou então aquelas torres romanas no Asterix, havia um banco, onde te sentavas, e era o da sanita, tudo a céu aberto, maravilha. Cagar a ouvir os pássaros e a ver o campo. Depois havia ganzas a monte. O Saul estava sempre a dar bafos no seu cachimbo de água e era um bacano porque representava sempre, sempre. Dava um bafo e passava-to logo. Andava sempre com a touca e eu também nunca vi ninguém ao pé dele que não estivesse com a touca...»
Ricardo, envergonhado, bateu-lhe forte na perna. Apesar de tudo e de todos os atenuantes aquilo não era conversa para se ter na polícia. Rómulo não estava minimamente chocado - nem sequer Carlos Silva -, do mais, como homem das ruas, sabia do jargão todo e mais algum. Também já lhe acontecera ter de dar bafos em cachimbos de água. Coisas do jogar infiltrado.
«Continua Marco. Estávamos a gostar de ouvir.», disse Carlos Silva.
«Não volto para lá. Não dou mais para aquela maradice.»
«Explica lá melhor o que era a maradice?», perguntou Rómulo.
«A maradice era a quantidade de droga que os freaks tomavam. E ácidos e quê. Alguns eram mesmo marados. Houve uma vez em que um teve os velhos a virem da Alemanha para ali só para o irem buscar. O chaval já tinha quarenta anos. Há mais cerveja?»
Carlos Silva deu-lhe uma lata de cerveja. 
«Depois havia os mamados. O Saul também era um bocado mamado, se bem que o Saul é outro andamento, outra onda. A mulher dele é que era completamente mamada.»
Riram todos. Sabiam o que o Marco queria dizer, mas não puderam evitá-lo. Mamado pela língua estava ele. E Carlos Silva entrou ainda mais por ali adentro:
«O que é o Sr. Marco quer dizer quando diz que a mulher dele é completamente mamada?»
«Mamada quer dizer agarrada. Viciada em heroa, quer dizer, em heroína. Desculpem.»
«Não ligues a advogados, continua.», disse Rómulo.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

35.


- Tanta coisa com o facebook. Depois ninguém lê, está no facebook. Então lê no facebook.

- Tudo é imediatamente tomado em possíveis impossíveis segundas terceiras intenções. Há sempre um plano palmado, estás a ver? Selfie de vida a nossa, que nunca nos faltem os retrovisores.

- O ditador é sempre o senhor da contabilidade, não que perceba de contas, mas percebe de castas. 

- Dias de marés vivas, prenúncios de mudança de estação? Pois, pois. Todos os dias. Vai muito não vai nada. Vem chega não vem foge. Todos os dias. Maré muito alta ou maré baixíssima. Então à noite... quando baixa aquela hora... a maré recolhe tanto que quase me deserto.

- Lobo solitário? Para já não é lobo. Nem dele nem de ninguém. Solitário? Bem, adora estar sozinho muito mais do que detesta estar sozinho - mas tantas vezes detesta estar sozinho, nem fazes ideia... Mas vai ver a qualidade do seu pêlo, não é pêlo de solitário, pêlo de solitário é mais áspero, nem se compara, o que este tem é uma característica semelhante que confunde bastante: não aguenta que o puxem - sai todo, que o esfrangalhem - é alérgico a chatos. 

Esquece, mas não te esqueças de esquecer. 

- Começas a objectivar o que não gostas. Seus porquês. Descobres coisas assaz interessantes. Da presunção ao saloio pedantismo, não saberias o que era não fosse o sabor amargo, esse ranço pretensioso, perfume por cima do cheiro, não fosse o cheiro o verdadeiro perfume. 

- Era falsa a afirmação mas soou sobretudo verdadeira, sobretudo porque era muito mais verdadeira, com muito mais verdade do que se tivesse sido de verdade.

- Furou a parede? Foi um acidente. Era só fachada. 

Barriga Cheia

Exactamente, pensava, dás-te bem com toda a gente. Há aqueles tipos que lavam dinheiro e és grande amigo, há os outros do grupo da fraude fiscal, e és grande amigo, há aquele outro que é empreiteiro para aí de metade das obras em Lisboa e vive ali mesmo no Hotel Sheraton e até deves ir almoçar com ele muitas vezes porque és grande amigo... Depois, como dás-te bem com toda a gente, também estás metido em causas sociais, ajudas instituições de caridade, vais a almoços com os velhos amigos da política, do sindicato, com os velhos amigos maoístas, que alguns deles até deram políticos e têm poder, ou deram colunistas fundamentalistas com poder. Depois há os outros amigos, os amigos de sempre, os melhores amigos, como o Chefe, os amigos sem amigos... 
Perdido em seu devaneio, Rómulo só apanhou a parte final da frase: 
«Mas se queres que eu fale dela, eu falo. Já não falo é de estômago vazio.»
«Siga. Gosto de ouvir-te falar de barriga cheia.»



Primeiro o desenho. A forma do desenho. E de desenhar a realidade. A Nova Iorque da Primeira Grande Guerra. As influências são óbvias. Pensamos, por exemplo, no Era Uma Vez na América de Sérgio Leone. A banda sonora grandiloquente bem pode remeter-nos a Ennio Morricone, o que assim como assim, já nos começa a remeter demasiado. James Gray não merece que se apague uma pontinha do seu mérito. Ele é que arrisca a valer, ele é que cria, executa e concebe magistral e superiormente aquele portentoso cinema. De filme para filme, Gray tem vindo a apurar, mesmo que o primeiro Little Odessa tivesse o fulgor extremo de um tiro de partida, longe de ser superado pelos seguintes e muito bons The Yards, We Own The Night, Two Lovers... Mas eis que chega este The Immigrant, quem diria, de longe, a sua obra maior, a obra-prima, o soco no estômago. 
Todos os filmes de Gray são fortes no melodrama e na tragédia, na força do enredo e dos personagens, The Immigrant, contudo, completa-se em si no circulo superior da força que nos esmaga enquanto nos comove. A matéria essa é tão densa que parece impingir-se em número nas próprias moléculas da realidade. A ciência da trama prova, no entanto, que nos limites das piores armadilhas e alçapões é possível, enfim, a redenção. A religião pode ou deve ser para aqui chamada, faz parte da vida. 

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Rascunho 666

Em 666 posts ao todo neste blogue tenho publicadas 458 entradas e 209 são supostos rascunhos. De vez em quando assusta um bocado olhar para dentro de um subterrâneo.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

34.1


Certa noite estava lá eu metido no estúdio e vi dos bastidores essa ideia romântica que já pouco se sente nos dias de hoje. A de rádio nocturna, de noite, de rádio, transmitida do estúdio pelas ondas aéreas do céu nocturno até às casas da cidade, de um país ou de um continente inteiro. Tom Waits... Leonard Cohen... Holy Cole... Billie Holyday... Dois apitos para as duas da manhã. Pink Floyd? Pink Floyd... Dire Straits... mais tarde Né Ladeiras... Louis Armstrong, era o que era, lá na sua coerência ou incoerência o locutor prosseguiria mas sempre nos limites do gosto, amanhã seria outra coisa, a voz, a voz não sei se bebia pouco, se bebia muito, se bebia de todo, trazia-a levemente decorada a whisky puxando a sela o cowboy solitário. Encorpada, terna, cheia de personalidade na sua conta, peso e medida, apenas o certo tom certo pronto para o afagar sem dar nas vistas, mas nunca mesmo nunca deixando de tentar inebriar o outro, esse ouvinte desconhecido da noite. Auxiliando a insónia, mantendo alerta o automóvel de qualquer longínqua estrada ou auto-estrada vinda de Viana do Castelo ou tanto faz numa esquina em Oeiras. Partilha de solidão, não solidão de partilha. Pode ser só o som de uma voz, ou apenas música som sobre a noite na Terra, dispensa o par, suspende-nos no ar, define-se bem a onda hertziana. A mim chegou da infância a ouvir rádio pela noite nas viagens de carro com o meu pai, ou já mais para a frente numa tenda de campismo acima da caruma dos pinheiros, de mansinho ouvindo do leitor gravador Sanyo sentindo a textura do saco-cama. O que não dá com rádio que não presta [deixem os maus rádios fora disso], rádio que não presta não é rádio, não fixa, nem o momento quanto mais a memória, nem uma memória que seja, nada, fixa nada... O problema da rádio, o grande problema da rádio, é mesmo só mesmo o esquecer-se de si própria. É o que acontece de dia, cada vez mais, em quase todo o lado, até ao dia em que todas as memórias de todas as memórias de rádio apenas se fixem na memória de um dia ter havido no planeta tal singularidade transmitida em tais singulares aparelhos... Agora de noite, de noite é mais difícil, a noite ainda é a última barreira, a guarda pretoriana, de noite a rádio ainda encontra o seu último refúgio, o porto de abrigo das tempestades, a estalagem perdida na Antártida, a abrigada hospedada zona de recolha e silêncio onde uma voz no ar ainda nos pode servir de farol no oceano da noite. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Apocalipse, Mano

Já só pensam em sobreviver na rua. Todas suas energias estão concentradas em arranjar uma horta. Eles sim, são sustentáveis, são (os) filhos da terra. Há quem deles já nem leia livros, pá, pelas árvores, claro que há de haver excepções se a leitura for útil, romances não («já não leio romances, diria depois, soprando ares de maturada decisão racional). Mas bem, se forem utópicos ou apocalípticos ou visionários ou com teorias da conspiração de permeio que «ponham a malta a pensar...». Olha para o relógio: «O mundo já acabou e não sabes, assim como não sabes plantar e colher, assim como não imaginas os problemas que nos esperam se tivermos de voltar às serras. Há tanto para falar em termos de sementes, animais, casas abandonadas. Sabes lá tu o que é a Natureza, fazer uma fogueira, sentir o silêncio...» Falo-lhe nos CD's que nunca me devolveu. «Não emprestaste nada... Deves estar a fazer confusão». Então no body, no crime, toda a razão, meu, devo-os ter fertilizado com umas sementes Monsanto. 

domingo, 9 de agosto de 2015

Rupturas e Traumatismos

Uma antiga colega minha do aikido a fazer uma rotura de ligamentos quase no fim da aula e eu a ser espancado por um gang em Santos* podemos dizer o mesmo: na altura não sentimos nada. Claro que nisto houve maneiras distintas de aquecimento, enfim. Ela sabia as horas terríveis que aí viriam, era só o corpo arrefecer... Sim, sabia que ia doer muito. Eu, eu não sabia nada. Foi de choque. Mal compreendia o que se estava a passar. Só mais tarde é que tive aquelas dores de ganir. Vá-lá que o azar não foi assim tanto, era só um traumatismo, num joelho, quase uma massagem... 

* - fui um dos azarados, diz que foram alguns e meteu polícia e até veio no Correio da Manhã, disseram-me, nunca confirmei nem quis saber.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Aberturas

Num dia de Abril de 1957, pela hora da tarde, apareceu em certa aldeola da costa um carro aberto, veloz como o pensamento. 
Já alguém tinha dado por ele quando ainda vinha a distância, roncando pela estrada fora. De longe, como era vermelho, vermelho vivo, lembrava uma chama de rastilho a romper no asfalto, entre mar e cabeços. 
«Que terra é aquela?», perguntou uma rapariga que vinha lá dentro.
«São Qualquer-Coisa», respondeu-lhe o homem que a acompanhava. 
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Guida apreciou deveras este desenho de São Romão com a sua onda bíblica e as iras dos pescadores escorraçados. Deixou o abismo, mãos enfiadas nas algibeiras do casaco, em direcção ao automóvel.
Lembrou-se de perguntar: qual valia mais, o carro ou São Romão?
O carro. Em dinheiro aqueles dez ou doze casebres não dariam para o Talbot Lago, dois litros e meio, que estava adiante, no deserto. Nem que se juntasse toda a tralha de redes podres, covos de lagosta e uma ou outra embarcação de fundo chato. Nem assim, nem mesmo assim.
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Jogo que não tenha regra não é jogo. Jogo sem parceiro também não. Era o que se dava aqui: a jovem Guida batalhava com palavras e o amigo não mexia uma palha para a ajudar. Jogo sem parceiro ou jogo à espera de parceiro, por um lado; jogo sem regra nem desfecho, por outro. 

José Cardoso Pires, em O Anjo Ancorado