quinta-feira, 17 de abril de 2014

16.

Inspirado, com as palavras prontas a chegarem sabe-se lá de onde, Henry Miller tinha esse hábito, antes de começar, dizia:«Sou todo ouvidos.». Então escrevia. A inspiração passa a palavra. O escritor só precisa criar condições necessárias à escuta. Limpar o terreno da vidinha. Buscar um género de neutralidade aparente (que de neutro não tem nada). A disponibilidade não se quer indisposta, Henry Miller tinha esse hábito. Dizia que quando não se consegue criar sempre se pode trabalhar. Então é limpar o terreno, deixar tudo a postos. Assim sempre se varre muito sábio conselho da escrita criativa. 

15.

Fosse um duelo, terias de tirar esse cinismo alegre que te serve de escudo. De qualquer forma, ficarias mais leve. Sempre tão dependente das pessoas, das pessoas e dos estímulos das pessoas... Ser um agarrado, dependendo do grau, tem sempre um lado manipulador. Constato o problema, esse calcanhar de Aquiles. Um calcanhar daqueles, diga-se... De vez em quando, ao Sol (que tudo reflecte), fica aí tudo à mostra. Um desses planos bem melindrados.

14.

Mesmo antes de o beber, o mau café já se me tinha atravessado. Vinha do leve cheiro a queimado e de uma mais fina textura que algum telescópio sensível a olho nu nos mostrasse. Qual censor próprio de alarme, avisava que me ia dar mal. Bem que telefonaste, fica o curioso agradecimento. O tempo passou. O café esfriou. De nada valeu nem tê-lo tocado. Acabada a conversa, meu coração mais parecia um tambor africano num ritual da tribo; a desidratada boca a secura de um deserto; um blitzkrieg entretanto preparava-se nos intestinos. O mau café tem um feitiço.