quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

11.

Dito assim passado é passado não é nenhuma mentira. Mas de que serve dizer passado é passado a quem não aceita contemplar o futuro? Seja porque não quer, seja porque não pode, seja porque não vislumbra nada além das nuvens negras que constantes poluem e impedem a(s) vista(s). Passado assim sempre a olhar o passado já nem é passado, é mais presente, sempre presente, passado presente, nunca passado passado. E o próprio futuro já não está nem vive no futuro, nem sequer está no presente. É mais passado, futuro inserido no passado, futuro perdido no passado. 

sábado, 18 de janeiro de 2014

Uma Cópia de Verdade



Orson Welles andou um filme inteiro a estudar falsificações. Histórias de cópias e falsários de tal forma complexas, intrincadas e substanciais que a determinada altura, como que sub-repticiamente, a pergunta impõem-se: e se a cópia, à sua maneira, se torna tão ou mais relevante que o original? Ou pelo menos fica o sublinhado em como determinado tipo de cópias acabará de certa forma por se tornar o seu próprio original. Para isso é preciso ver o exemplar do seu trabalho sobre o invisível mimetismo da grande obra de arte. Há também hierarquias para isso, claro, tem de haver. Hierarquias sustentadas no saber do falsificador em sua complicada tarefa do alcançar da veracidade - onde podem contar altos níveis de virtuosismo, minúcia e sentido de pormenor -, sendo o alvo mais ou menos atingido consoante o falso (a mentira) se consegue confundir com o verdadeiro (a verdade). 
O que pode ocorrer de duas maneiras: ou ludibriando-nos - por tempo indeterminado, quem sabe -, ou então assumindo sua natureza de cópia mostrando ao mundo todo o seu jogo. No primeiro caso, a ignorância do seu mérito maior é seu próprio segredo e assinatura (de excelência). No segundo, impõe-se essa tal hierarquia de aproximação ao verdadeiro. É quando podemos dizer: «é uma cópia de verdade!». Quando também podíamos dizer: «é uma cópia apanhada pela verdade». O que pode não ocorrer nas melhores falsificações. As tais que tão bem se confundem com o verdadeiro que a verdade mesma fica por revelar por tempo indeterminado.

            

Abbas Kiarostami em "Cópia Certificada" vai por aí de outra maneira. Aqui o faz de conta é uma possível e/ou impossível história de amor que acontece a determinado momento entre um escritor que se debruça sobre falsificações e uma galerista de arte que se interessa pela sua obra - onde se pode incluir um livro publicado sobre esse mesmo assunto. 
Resumindo: um escritor (William Shimell) e uma galerista (Juliette Binoche) que nunca se haviam cruzado até então - tendo-se conhecido pouco antes numa palestra do escritor - embarcam por um desses circunstanciais acasos da vida numa viagem de carro através da Toscânia. Conversa puxa conversa, muito acerca do assunto das cópias e falsificações, gera-se ao mesmo tempo um processo de empatia e envolvimento que tem seu ponto culminante* quando uma senhora num café os confunde com um casal de verdade. Se é apenas um acaso ou se a reflexão interior acerca do sujeito verdade versus falsidade (ou veracidade) teve sobre isso influência, isso agora interessa, podendo sempre ficar como tópico de reflexão. Interessa sim e muito, é o que aconteceu imediatamente a seguir, de somais importância em sua, passe o termo, singular singularidade: o exacto ponto de intersecção entre a realidade e o sonho, entre a verdade e veracidade, entre o original e a cópia. Esse ponto está precisamente ali, no seu assumir como um casal de verdade, eis essa a ponte para o outro lado. Afinal o assunto sobre o qual haviam falado e reflectido está mesmo ali à frente dos olhos, a poder ser vivenciado, testado, experimentado. Eles mesmos tinham ali a (sua) oportunidade (tão rara), eles mesmos podiam ser a cópia de um original, a cópia de um casal original. 
Há nos dois personagens (enfim, mais nela que nele) a tentação e o instinto de passarem para esse outro lado, de cruzarem instantaneamente essa ponte fictícia. Ela exteriorizando-o mais. Ele vivendo-o também, se bem que reflectindo bastante, sendo mais contido. Sim, podia ser um mote, uma mola, uma alavanca para uma história de amor. Porém um mote que abre em si todo um problema, quiçá irresolúvel, pois que assumindo-o como disfarce, o mesmo cai em si pelo mecanismo da verdade, ou dito por outra palavras, os dois não teriam assim nenhuma hipótese de prosseguir assim tão sublime jogo. 
Por outro lado, não assumindo o disfarce, e fingindo o amor como se tivesse realmente acontecido, acabam eles por entrar no âmbito do sonho. E no sonho, quanto menos sabemos que é sonho, quanto mais o sonho é fiel a si mesmo, à sua natureza de sonho. Não, o sonho aqui não é o sonho do amor vivido, isso podiam atingir eles acordados. Já o serem um casal feliz há muitos anos juntos, e com uma vida em comum completa e satisfatória, para dois desconhecidos só mesmo em sonho. Porém os sonhos apenas duram enquanto nos iludem. A cópia também, e como nos exemplos de "F Fake", também esta cópia (de casal) é suficientemente complexa, intrincada e substancial para acabar por desenvolver o seu próprio mecanismo, a sua própria história, o seu teatro. Eis o que assemelha as duas obras, o que as une até, pois tanto dois desconhecidos a fingir o casal perfeito como os falsários das grandes obras de arte têm em comum esse negativo da cópia. O mérito supremo de Orson Welles e Abbas Kiarostami é darem-nos a ver o seu lado positivo. 


* - o chamado plot point, que se pode ler em certos on writings desta vida, é uma expressão aqui perfeitamente adequada. A hell of a plot point, digo eu, ponham a hell nisso. Só duvido é que esteja devidamente enquadrado no ponto geométrico que certos gurus dizem que deve estar, mas isso é toda uma outra conversa.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O que não parece, é

Interessa-me pouco a escrita diarística como mero registo factual de eventos. Deixando o mais pessoal de fora, ou não engreno com isso ou não sei engrenar. Menos interessa o que vai para debaixo do tapete, ou coisa pior, tipo havia um bêbado na rua de madrugada, chegou-me ao correio uma carta das finanças, já não é a primeira vez que me falha este esquentador; ou o transito estava impossível e bem pior que em todas estas greves do Metro às quintas-feiras... Não vou duvidar do curioso para lembrança futura. Ler como se olha aquele álbum de fotos que como mais nada na vida nos atiça e reinventa (as) memórias. Pena que tão raramente me dê a esses trabalhos - duas ou três vezes por ano, se tanto -, mas quando eventualmente acontece, é sempre a mesma luta inglória a cada frase. Sobretudo por querer entrar pelo que escrevo adentro e depois ter o problema de não saber muito bem quando nem onde saio e o que quero ali é comer o bolo todo até ao fim. Para o texto o gozo do texto, enumerar factos não é propriamente escrever. O factual, na melhor das hipóteses, não me passa da panorâmica à vista do que já se vi. Na pior, é mais um burocrático aborrecido exercício, o que até faz mal, força o sistema nervoso. E então, como remédio, vai de meter ficção, truncagens e forjanços, muita sumária aldrabice para temperar o gosto e poder haver algum mínimo interesse no my own subject. Claro que nem todos somos parentes de Dom Quixote, nem sequer primos distantes. Nem de um David Foster Wallace com as suas mais de mil páginas a letra minúscula (dizem, ainda não folheei o livro). 
Disso da distância que nos dá o longínquo Foster Wallace fiz prova primeira há pouco tempo ao ler aquele muito bom ensaio sobre um famoso jogo Federer/Agassi. Ainda não fiz prova segunda, muito menos a verdadeira prova, que tenho fora das prioridades. Mesmo assim nunca se sabe, talvez o entusiasmo de Rogério Casanova e a recente leitura de Rui Ângelo Araújo façam com que um dia morda o isco. Ou se existir isso do tempo e da leitura certos para a altura certa, tipo colheita da Primavera (quem sabe?). O que não me parece. Ou então parece que não me parece. O não me parece choca com esse batidíssimo cliché que leio e ouço aqui ali de vez em quando: o de que o que parece, é. Já as variantes nunca se ouvem. Ou ouvem? Eu nunca ouvi. Nunca ouvi dizer o que não parece, é. Nunca ouvi dizer o que parece, não é. Mas na política, no futebol, nos negócios, em conversas subliminares ou naqueles normais palpites do real, quantas vezes não o ouço dizer: o que parece, é. O que se diz em jeito de adivinha adivinhada, de sabimento e conhecimento. Problema é as vezes em que o parecer se vê desmentido - muitas mais do que parecem, claro - e a realidade dá a ver, cristalina, que o que parecia afinal não parecia nada. E não parecia mesmo. Como dizia o mago João Pinto, o defesa direito: "prognósticos só no fim da partida". Não há cá testes a posteriori. Não há mas eu fiz um. Teste de quê? Um teste de realidade a posteriori, claro, e fazer um teste de realidade a posteriori assim agora, só mesmo com os exemplos acima citados, a contar da terceira linha do texto. Pois dito e feito, resultado unânime em quatro das prerrogativas: o que não parece, é. Vejam o bêbado, descobri quem era numa investida à varanda, e se vos disser o quanto não fazia a mínima ideia, o quanto tal nunca me passou pela cabeça... Ressalvo que tive de eliminar a carta das finanças, fez batota e aquilo nem é bem um roubo, é mais um assalto autorizado. 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

David Simon - The Horror Show

Há muito para onde ir quando o assunto é David Simon. Também acontece ser das vozes que me mais vale a pena ouvir quando se fala nos tempos presentes. Não estivéssemos todos metidos num mesmo barco que se afunda. Eis um apanhado, editado quanto baste, de um discurso longo já por si editado do visionário, jornalista, escritor e criador da série "The Wire" (com Ed Burns), o que na medida de importância, será sempre um sumário.


I think Marx was a much better diagnostician than he was a clinician. He was good at figuring out what was wrong or what could be wrong with capitalism if it wasn't attended to and much less credible when it comes to how you might solve that.

You know if you've read Capital or if you've got the Cliff Notes, you know that his imaginings of how classical Marxism – of how his logic would work when applied – kind of devolve into such nonsense as the withering away of the state and platitudes like that. But he was really sharp about what goes wrong when capital wins unequivocally, when it gets everything it asks for.

That may be the ultimate tragedy of capitalism in our time, that it has achieved its dominance without regard to a social compact, without being connected to any other metric for human progress.

We understand profit. In my country we measure things by profit. We listen to the Wall Street analysts. They tell us what we're supposed to do every quarter. The quarterly report is God. Turn to face God. Turn to face Mecca, you know. Did you make your number? Did you not make your number? Do you want your bonus? Do you not want your bonus?

And that notion that capital is the metric, that profit is the metric by which we're going to measure the health of our society is one of the fundamental mistakes of the last 30 years. I would date it in my country to about 1980 exactly, and it has triumphed. 

Capitalism stomped the hell out of Marxism by the end of the 20th century and was predominant in all respects, but the great irony of it is that the only thing that actually works is not ideological, it is impure, has elements of both arguments and never actually achieves any kind of partisan or philosophical perfection.

It's pragmatic, it includes the best aspects of socialistic thought and of free-market capitalism and it works because we don't let it work entirely. And that's a hard idea to think – that there isn't one single silver bullet that gets us out of the mess we've dug for ourselves. But man, we've dug a mess.

(...)

Labour doesn't get to win all its arguments, capital doesn't get to. But it's in the tension, it's in the actual fight between the two, that capitalism actually becomes functional, that it becomes something that every stratum in society has a stake in, that they all share.

The unions actually mattered. The unions were part of the equation. It didn't matter that they won all the time, it didn't matter that they lost all the time, it just mattered that they had to win some of the time and they had to put up a fight and they had to argue for the demand and the equation and for the idea that workers were not worth less, they were worth more.

Ultimately we abandoned that and believed in the idea of trickle-down and the idea of the market economy and the market knows best, to the point where now libertarianism in my country is actually being taken seriously as an intelligent mode of political thought. It's astonishing to me. But it is. People are saying I don't need anything but my own ability to earn a profit. I'm not connected to society. I don't care how the road got built, I don't care where the firefighter comes from, I don't care who educates the kids other than my kids. I am me. It's the triumph of the self. I am me, hear me roar.

That we've gotten to this point is astonishing to me because basically in winning its victory, in seeing that Wall come down and seeing the former Stalinist state's journey towards our way of thinking in terms of markets or being vulnerable, you would have thought that we would have learned what works. Instead we've descended into what can only be described as greed. This is just greed. This is an inability to see that we're all connected, that the idea of two Americas is implausible, or two Australias, or two Spains or two Frances.

Societies are exactly what they sound like. If everybody is invested and if everyone just believes that they have "some", it doesn't mean that everybody's going to get the same amount. It doesn't mean there aren't going to be people who are the venture capitalists who stand to make the most. It's not each according to their needs or anything that is purely Marxist, but it is that everybody feels as if, if the society succeeds, I succeed, I don't get left behind. And there isn't a society in the west now, right now, that is able to sustain that for all of its population.

And so in my country you're seeing a horror show. You're seeing a retrenchment in terms of family income, you're seeing the abandonment of basic services, such as public education, functional public education. 

(...)

We have become something other than what we claim for the American dream and all because of our inability to basically share, to even contemplate a socialist impulse.

I'm utterly committed to the idea that capitalism has to be the way we generate mass wealth in the coming century. That argument's over. But the idea that it's not going to be married to a social compact, that how you distribute the benefits of capitalism isn't going to include everyone in the society to a reasonable extent, that's astonishing to me.

And so capitalism is about to seize defeat from the jaws of victory all by its own hand. That's the astonishing end of this story, unless we reverse course. Unless we take into consideration, if not the remedies of Marx then the diagnosis, because he saw what would happen if capital triumphed unequivocally, if it got everything it wanted.

And one of the things that capital would want unequivocally and for certain is the diminishment of labour. They would want labour to be diminished because labour's a cost. And if labour is diminished, let's translate that: in human terms, it means human beings are worth less.

(...)

Mistaking capitalism for a blueprint as to how to build a society strikes me as a really dangerous idea in a bad way. Capitalism is a remarkable engine again for producing wealth. It's a great tool to have in your toolbox if you're trying to build a society and have that society advance. You wouldn't want to go forward at this point without it. But it's not a blueprint for how to build the just society. There are other metrics besides that quarterly profit report.

The idea that the market will solve such things as environmental concerns, as our racial divides, as our class distinctions, our problems with educating and incorporating one generation of workers into the economy after the other when that economy is changing; the idea that the market is going to heed all of the human concerns and still maximise profit is juvenile. It's a juvenile notion and it's still being argued in my country passionately and we're going down the tubes. And it terrifies me because I'm astonished at how comfortable we are in absolving ourselves of what is basically a moral choice. Are we all in this together or are we all not?

(...)

And that's what The Wire was about basically, it was about people who were worth less and who were no longer necessary, as maybe 10 or 15% of my country is no longer necessary to the operation of the economy. It was about them trying to solve, for lack of a better term, an existential crisis. In their irrelevance, their economic irrelevance, they were nonetheless still on the ground occupying this place called Baltimore and they were going to have to endure somehow.

That's the great horror show. What are we going to do with all these people that we've managed to marginalise? It was kind of interesting when it was only race, when you could do this on the basis of people's racial fears and it was just the black and brown people in American cities who had the higher rates of unemployment and the higher rates of addiction and were marginalised and had the shitty school systems and the lack of opportunity.

And kind of interesting in this last recession to see the economy shrug and start to throw white middle-class people into the same boat, so that they became vulnerable to the drug war, say from methamphetamine, or they became unable to qualify for college loans. And all of a sudden a certain faith in the economic engine and the economic authority of Wall Street and market logic started to fall away from people. And they realised it's not just about race, it's about something even more terrifying. It's about class. Are you at the top of the wave or are you at the bottom?

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Depois de Moby Dick

Não é dos meus romances de eleição, certo que achei nele passagens extraordinárias, históricas, épicas até, mesmo inesquecíveis; mas também encontrei o enfadonho aborrecimento, por vezes um certo arrastar penoso, pastoso, um tanto ou quanto para o chato. Porém, enfim, como nos grandes clássicos, algo no conjunto transportava-me em sua viagem, apontando muito além da escuridão que emanava. Recordo bem a louca e indestrutível obstinação de Ahab, que perante o prenuncio do desastre, se tornava em crescendo assustadora. Era a tensão principal, entre várias. Mas do bolo o recheio: a descrição do Pequod, dos mares e marinheiros, os singulares personagens, suas rotinas diárias, as particularidades e características da genuína navegação. Depois a viagem mental de Ismael, seu fluxo de consciência entre os meandros do medo e da descoberta, suas reflexões e iluminações, certa preparação iniciática, e, finalmente, com o perigo eminente à espreita, a preparação para o embate final e definitivo - a baleia branca gigantesca indomável, letal e impossível ao desafio humano. Os efeitos da fúria de Moby Dick encerram a obra, ecoando depois muito além da leitura - apenas entendida pelo mundo bastante depois da edição do livro -, ou melhor, ecoaram...  

Mesmo assim não posso dizer que Moby Dick me tenha deixado particulares saudades, pouco até creio que alguma vez se torne um verdadeiro companheiro de viagem, muito menos livro de cabeceira, simplesmente não é obra que me dê vontade de reler, ou sequer sinta curiosidade em regressar. Moby Dick porém pensa o contrário. Ou melhor, pensava o contrário. Certo dia em que se fez anunciar. Para dizer que ainda não tinha sido lido por inteiro. 
Fez-se anunciar sim. Certo dia fez-se anunciar, e entrou, eu já tinha começado a sentir a sua presença, não sei porquê pensando no livro, até que comecei a revivê-lo
Tudo começara enquanto seguia viagem para sul. Eu disperso em pensamentos, a sentir-me em dias negros, estava Moby Dick a chegar-se a mim, até tudo se tornar mais claro, claro em sua própria escuridão, até eu seguir outra vez dentro daquele mesmo barco. 

Era eu, Ismael, a navegar em negritude, tempestade e névoa lá fora, o perigo crescente e repetido alternando idas e vindas num acentuar-se em espiral à medida do seu tempo. Sentia o mal eminente, sabia que assim chegaria a algum ponto culminante, a algum trágico final. Alguma espécie de colossal baleia branca estaria perto, muito perto. Eu era o próprio Ahab, não podia ser mais ninguém. Também era o Pequod, os marinheiros, tudo ali era eu, via ao naufrágio anunciado. Saber toda a história não serviria para nada, o livro ainda hoje não me diz grande coisa. Todos os avisos eu ignorara, prosseguir viagem, alcançar a baleia branca era tudo o que desejava, com a obstinação dos loucos, nada me faria demover contra todos os avisados e até sábios conselhos que insistentemente dera a mim próprio. Isto ia até ao fim! E foi, foi até ao fim. Talvez Moby Dick  me fosse o mal inultrapassável, talvez fosse enfim a natureza a querer dar-me sua categórica e definitiva lição. Verdade é que já estava fora, naufragara. Afinal de contas, não tinha acabado de ler o livro. Achava que tinha, por tê-lo fechado depois de lida a última palavra na última página, depois de ter lido todas as palavras de todas as páginas. Mas afinal não, não tinha, havia contas a ajustar, fora eu mesmo que as fizera. 

Hoje sei, sinto, posso dizer: Moby Dick não voltará mais. 

Mestre Georges Stobbaerts (1940-2014)

A profound thing in a simple way

Li uma vez um texto de Charles Bukowski em que este falava de um suposto poeta menor que ter-lhe-à dito certo dia "eu posso escrever como tu, mas tu não podes escrever como eu". Ele apenas pensa que pode escrever como eu, eis a resposta do escritor, ao que se seguiu a célebre deixa: "Genius could be the ability to say a profound thing in a simple way, or even to say a simple thing in a simpler way". Ele há quem não consiga ou não queira reparar na mestria na aparente simplicidade e desembaraço da técnica, ou na sabedoria vinda de anos de trabalho duro e desesperado no fio da navalha, ou mesmo num pouco ortodoxo humor que galga milhas no caminho da sabedoria. Não terá lido "Pulp" (o texto até é muito anterior)  - sobre o qual eu escrevo agora que mesmo assim não é nem de perto nem de longe, nem mesmo a lente de telescópio, do melhor e mais autêntico Bukowski que se pode ler. Mesmo assim, na desmontagem do cliché, no inusitado dos diálogos ou no non sense que da aparente puerilidade se pode encerrar no mais definitivo e profundo sentido, genius could be the ability to say a profound thing in a simple way, or even to say a simple thing in a simpler way. Como em jeito de brincadeira:
ou:

domingo, 5 de janeiro de 2014

Má Fé em Novilíngua

Quem aceitou ou tem aceite, quanto mais não seja pelo esmagador efeito de repetição, palavras como ajustamento (em vez empobrecimento), requalificação (em vez de despedimento), descontinuação (em vez de encerramento), crescimento negativo (em vez de recessão), contribuição especial (em vez de roubo sob a forma de imposto encapuçado). Quem, de uma maneira ou de outra, engole ou reproduz toda esta nova linguagem de palavras tipo - cosmética pura e dura para esconder e camuflar a verdade de embuste e roubo a que estamos sujeitos - não deve agora ficar surpreendido ou sequer reparar por aí além nas duas recentes aquisições ao género novilíngua de pau empacotada a uma descomunal lata : recalibrarinconseguimento. 

Repito, merece: recalibrarinconseguimento.

Reparem no que tenta ali soar  de avançado (e mundividente até) para meros tecnocratas e/ou burocratas do corte. Se recalibrar (meu corrector ortográfico está mesmo ultrapassado) mostra expertice, inconseguimento (raio do corrector, não há direito) tenta soar mais fashionable. Sempre é um dois em um, caso tenham sido ditos os dois no mesmo dia, o que também aumenta a média deste (des)Governo  - que dizem que é incompetente mas que na verdade está a fazer o que quer, como quer, e com todos os objectivos propostos e auto-propostos a serem alcançados - de cada dia, cada cavadela, cada minhoca. Não deixo porém de louvar a eficácia do mecanismo em todo seu esplendor camuflado. O que não é assim tão difícil. Talvez seja mesmo possível saber a forma como vai jogar o adversário:

Pergunta - A este nível de taxa de juro como é que não vamos ter novo resgate?
Resposta - Como é que pode dizer uma coisa dessas? Olhe que isto assim dito muitas vezes pode até pôr os mercados a pensar coisas e aí sim, corremos o risco de um novo pacote de resgate. Mas não, não vamos ter nenhum novo resgate. O que vamos ter sim é um Programa Cautelar, necessário aliás para fazermos a correcta transição de país intervencionado para...

Ignorante e sem dicionários de novinguês, fico sem saber se apanhado o próximo assaltante à mão armada de um banco, ou joalharia, ou bomba de gasolina, ou seja lá o que for, sempre se pode dizer que o que se tratou foi de uma recalibragem imediata de recursos;  ou, quem sabe, se de uma súbita requalificação de bens. Problema do ladrão, que inconseguiu fugir... Perdoem a vulgaridade, mas é apenas para sublinhar o óbvio. Que fique tudo pois e apenas para uso, abuso e privilégio exclusivo da nomenclatura

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Al Capone da Conceição

Sabia-se, constava, que tinha emigrado para a América num grandecíssimo nevoeiro, com Detroits, Newarks e Elsewheres pelo meio, até que numa noite pressentira o beijo da morte a espreitá-lo numa esquina lá dos States e aportara a Lisboa sob o nome de Conceição. Chegou e sem perda de tempo tornou-se proprietário duma leitaria para disfarçar o passado que se calhar nunca teve e o quarto de jogo clandestino que instalara nas traseiras do negócio. Por isso é que nunca saía da mesa lá do fundo, olho no balcão e ouvido na parede que o separava dos jogadores.
Nas tardes da Almirante Reis, com os eléctricos a tilintarem, avenida abaixo, avenida acima, a leitaria era duma inocência comovedora. Dois ou três vadiantes em faz de conta a cervejarem ao balcão, um criado, dois anjos voadores a suspenderem um espelho na parede e o Al Capone em pessoa exilado numa mesa, a impor respeito ao ambiente.
Dali ninguém o arrancava desde o abrir ao fechar da casa; e palavras, o menos possível. Al Capone da Conceição comia de jornal aberto como nos filmes americanos, e se alguém lhe desejava bom proveito respondia com um aceno numa sílaba por cima das entrelinhas.
A um, que se chegou à mesa dele para o cumprimentar, «Como vai, senhor Conceição?», deitou-lhe um olhar indignado e deu-lhe a resposta devida:
«Tem alguma coisa com isso?»
Às vezes entrava o Mil e Quinhentos, que era um polícia da esquadra de Arroios enxertado de chacal, um demónio artilhado de fogante e cassetete, mas nem a esse o Capone se prestava a falar. Na sua qualidade de comerciante e de cidadão legalizado, deitava-lhe um aceno de cumprimento, ficava-se a vê-lo pelo espelho a despachar as duas cervejas da praxe e deixava-o sair sem pagar por entre os dois anjos de latão.
Este Mil e Quinhentos metia medo só com a sombra. Se não chegara a chefe era porque isso de chefe o obrigava a trabalhos de secretaria, que não se davam com o seu feitio e ele gostava era de fazer o gosto ao dedo quando o gatilho lho pedia ou de afagar o lombo dos distraídos com o cantar do cassetete . «Tenho os meus métodos», dizia.
Certo, certo na leitaria da Almirante Reis era um Martins, a quem chamavam o Mãos de Seda, por o dizerem carteirista a tempo inteiro e pelos muitos saberes dos seus dedos no trabalhar as cartas e os dados. Baixo e entroncado, tinha um sorriso muito fresco, apesar de já andar pelos quarenta, e, caso especial, apreciava o bem falar. Tanto que, quando um dia o Al Capone ordenou ao empregado que mudasse os róteis dos boiões dos caramelos, não resistiu a deitar-lhe um meio sorriso atravessado:
«Róteis? Rótulos, senhor Conceição. Rótulos é que o senhor quer dizer.»
O outro encolheu os ombros com desprezo: «Acha?»
«Claro. Rótulos e não rotéis, senhor Conceição.»
«Homem», respondeu o Capone, «rótulos é para as garrafas, róteis é para as caixas», e, ponto final, abriu o Diário Popular e mergulhou na página das palavras cruzadas.

José Cardoso Pires, A Cavalo no Diabo, Círculo de Leitores, 1995

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014


10.

Gosto da vida com literatura. Gosto da literatura que se serve da vida para dar vida à literatura. Não gosto da vida sem escritores, como não gosto de escritores sem vida.