domingo, 22 de janeiro de 2012

E pur si muove




A marca de água de “Os Bórgia” de Neil Jordan, e sua rara particularidade, é a forma como consegue fixar o design e os actores em retratos de época. Experimente-se parar a imagem e ficamos com a impressão de uma pintura. Pensamos em Michelangelo, Leonardo Da Vinci e outros pintores da Renascença. Mesmo que inadvertidamente, pois a excelência do decor e a direcção de actores a isso põem-se a jeito. Quem não consiga carregar no botão de pausa poderá ainda assim em determinados momentos intuir um quadro em movimento, ser surpreendido por um “lá está, aqui temos um quadro”. Reparamos no óbvio que é os retratos então pintados serem reproduções de formas de ser e estar daquele tempo. Constatamos que é raro termos isso movendo-se em imagens. Pessoalmente só consigo lembrar-me de uma tentativa na obra-prima de Éric Rohmer "A Inglesa e o Duque”, se bem de forma mais explícita e num registo distinto, cujo exemplo maior é o uso da própria pintura como cenário.

É pois o trabalho de composição a maior valia de "Os Bórgias": fixar o movimento na forma, “pintar” a forma no movimento. No resto, a série talvez prime por um excesso de suspense, morte e violência – ainda vou no terceiro episódio e vejo ali matéria para o triplo  - o que também pode ser considerado uma qualidade, dependendo de por onde se olhe. A verdade é que aquilo agarra, e não chegando aos calcanhares de "Rome", não é pateta e batoteiro como "The Tudors". Valerá sempre a pena, quanto mais não seja por termos Jeremy Irons a fazer de Papa Alexandre VI (Rodrigo Bórgia) numa interpretação de assombro. Ele e a reprodução do Vaticano renascentista por si só valem o tempo empregue. E perdoam qualquer coisinha. 



Adenda: Tentando ver se tudo isto não era só impressão minha, deparei com este esforço curioso. Um esforço que vale a pena :)

sábado, 14 de janeiro de 2012

Documentos


Gosto às vezes de me sentar ao sofá e ir aleatoriamente pelas gravações do Meo. “Bugsy”, de Barry Levinson era dos poucos mafia movies que me falta ver. Bom filme, tem força, drama, mistério, é tudo menos redundante, todo ele à volta da imprevisibilidade da persona de Benjamin "Bugsy" Siegel e da interrogação que ainda sobre ele paira: gangster ou visionário? Creio que seria sobretudo um gangster cheio de vulnerabilidades, era frágil, os maiores mafiosos do século XX não levavam isso a mal até ao dia em que provaram não estar à altura daquela visão milionária. Mal agradecidos, fartaram-se de ganhar dinheiro com ele, provavelmente mais  do que com qualquer outro ser humano. Ainda hoje
Sou cada vez mais levado a crer que os melhores biopics são os que metem bandidos. E que Warren Beaty e Annete Benning foram mesmo feitos um para o outro, e que Ennio Morricone é em si uma marca de agigantamento de um filme. Parece que Barry Levison anda a rodar mais um filme do género, agora sobre a vida de John Gotti e do filho John Gotti Jr. Al Pacino faz do mentor Neil Dellacroce e John Travolta do Gotti mais velho. A história sabe-se que é daquelas de caixão à cova*.

Depois vi o documentário "Documento Boxe" de Miguel Clara Vasconcelos. Tinha isto gravado a 3 de Dezembro. Muito bom. Anda à volta das habituais histórias do boxe e de Jorge Pina, incrível boxeador, atleta e personagem no melhor sentido do termo. 
O boxe é um sub-mundo que verdadeiramente me interessa. Digo sub-mundo porque há ali muito mais sub-mundo que mundo propriamente dito. Como desporto não sou assim grande apreciador, mas o meio fascina-me. Sou grande adepto de tudo o que é filme sobre boxe que me vem parar ás mãos: "Belarmino" de Fernando Lopes, "Counterpuncher" de Bruno de Almeida, "Raging Bull" de Martin Scorsese, "Million Dollar Baby" de Clint Eastwood, o primeiro e ultimo "Rocky" de Silvester Stallone. Uns melhores que outros, são todos bons filmes. Ando doido para ver o documentário “Tyson” de James Toback, o mesmo que escreveu “Bugsy”. Duma maneira ou de outra isto está tudo ligado. 


(*) - Também parece que foi suspensa a rodagem do filme, não há dinheiro, dizem.

Mais uma semana, mais uma viagem




46 mil euros mês acumulando com uma reforma de 9693 euros? Olhem, é bom para o Estado, 50% do que ganho vai para impostos. Insistem? Querem o quê? Se querem competência, eu sou o Cristiano Ronaldo da gestão. Mais perguntas? Logo vi. 
Entretanto, agora é Relvas que quer incentivar os jovens a emigrar, Manuela Ferreira Leite quer que quem tenha mais de 70 anos pague a hemodiálise, o Álvaro quer franchises de pasteis de nata, Mário Crespo quer Miguel Beleza pela 3589 vez no seu programa. Insistem? Querem o quê? Não vêem que isto de Portugal está para lá das vossas possibilidades. Trabalhem muito, rezem. Não há dinheiro. Mais perguntas? Logo vi. 


(Foto Henricartoon)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Habemus Papam




Nanni Moretti é verdadeiramente o que se pode chamar um tipo decente. De finíssimo humor, é culto, despretensioso, afiado na critica, sarcástico, exímio na arte da ironia, entre demais extraordinárias qualidades que o tornam absolutamente essencial em todo este terrífico panorama presente. Depois tem outra particularidade que junta ao seu lúcido esquerdismo militante: é assumidamente ateu. Em “Habemus Papam”, Moretti presta-se a fazer um filme à volta da eleição de um Papa.
O Papa recém eleito (Michel Piccoli) vacila perante o peso da responsabilidade que subitamente tem perante si e a sua vida. Não se sentindo à altura da colossal tarefa que tem em mãos, o Stress, o pânico e a depressão tomam conta dele, Moretti é o psicanalista incumbido de tentar fazer qualquer coisa. Eis o ponto de partida de "Habemus Papam". Espera-se uma “psicanálise” ao Papa eleito, mas a situação digamos que é adiada, o Papa foge e desaparece em Roma, de onde vive sua crise existencial paredes meias com um quotidiano mediático que discute hipóteses e cenários perante o que realmente aconteceu ao novo Papa. Enquanto isto, em pleno Vaticano e à falta de melhor, Moretti, cardeais e não só, vão aguentando o impasse o melhor que podem e sabem. Daí chegam insólitos momentos de comédia como o recolher aos aposentos antes de dormir, os jogos de cartas, ou um campeonato de voleibol a fazer lembrar o jardim escola. Lá fora, o Papa eleito está mais virado para o teatro de Tchekov. Perante isto, o final soa um pouco apressado, rebuscado até. De qualquer forma, a verdade é que o Papa não está nem pronto nem a ponto, não poderia estar, não há milagres, mesmo que inadvertidamente se busque no filme alguma "transcendência divina", mesmo em se tratando de uma comédia de um céptico ateu de esquerda. Mas Nanni Moretti não está ali para enganar ninguém. Na verdade, escolheu o final que escolheu, fez o filme que bem quis e os dois inconciliáveis mundos ateu e católico continuam tão incomunicáveis como estavam no início do filme. Porém, da gentileza desse contacto – não creio que se possa aqui dizer encontro – ambos saem bem na fotografia: o ateísmo puro e duro e a Igreja Católica a poder rir-se de si própria; o tom levemente irreal do filme a isso ajuda. Não por acaso Moretti foi mais atacado por não ter feito um filme de protesto do que por feito troça da igreja católica. O que prova mais uma vez que este genial cineasta romano vive para além do "mercado das expectativas". Fez o  filme que quis e soube fazer e não o filme que a maralha queria que fizesse. O que só abona a seu favor. 

domingo, 8 de janeiro de 2012

A Taberna do Espanhuélio

Estávamos em Milfontes, num Agosto algures em meados dos anos 90. Havia na altura uma taberna perto do castelo que servia de poiso para fugir ao maralhal. Tinha a Sagres barata e era muito agradável, genuína e sem gente. Raramente via lá alguém que não o dono, já com os seus setenta e muitos, e a mãe do senhor, que pelas minhas contas só podia andar pelos noventas. 
Taberna alentejana, mas cheia de luz, com um lindo tecto de canas, paredes brancas e duas mesitas, uma de cada lado. Limpa, aprumada, arejada, com nada que se assemelhe à ideia que normalmente se tem de uma taberna, mais ainda da lisboeta, que escura tresanda a vinho e a alcoolismo decrépito. 
Eu sentava-me na mesa da esquerda, como quem entra, pedia uma Sagres, lia o jornal, um livro, ou então não lia nada, saboreava do silêncio que o velhote taberneiro devia andar farto de saborear. Se fosse pelos ares que tinha, não se devia cansar daquilo, mesmo sendo raro entrar lá alguém e quando entrava era mais de passagem, mesmo à noite, que o pessoal queria era acção e a pouca acção que havia era num ou noutro bar dançante e na Barbacã, onde se ouviam guitarras e se via a noite  na foz do Rio Mira, uma das mais esplendorosas vistas que se podem conhecer em vida.
Um desses dias, vindo da praia, trazia com os jornais o livro “Leão, o Africano”, de Amin Maloouf. Foi a primeira vez que do taberneiro não ouvi a conta.
- Permita-te que lhe interrompa a leitura, mas o que é que o senhor está a ler?
Mostrei o livro.
- Há esse! O Amim Maalouf. Conheço, conheço...
- Este é uma história incrível.
- O jovem deve conhecer "As cruzadas vistas pelos árabes"...
- Não. Esse nunca li.
- Pois esse eu li.
- E gostou?
- Gostei. É muito interessante. 
Começou a falar do livro, das cruzadas, dos árabes, de Maomé, de história, de Portugal, da igreja, de políticos, de bandidos, de vigaristas, tudo numa salganhada confusa, repetitiva e incongruente, que na verdade não me posso recordar. Sei que me fazia perder em divagações, porque não ia ler o jornal ou o livro com ele a dirigir-me a palavra, então deixava-o falar à vontade, mais a mais porque seria incapaz de ser mal educado e rude com o senhor. Só desejava que acabasse o monólogo para ir à minha vida, antes que tivesse de arranjar uma desculpa e cavar dali para fora. Mas nem foi preciso. Pelo contrário. Não podia estar a sonhar.
- Estava-lhe a dizer que é o melhor escritor do mundo. Estive a falar com um senhor que sabe destas coisas e ele informou-me: o Amin Malouf é o melhor escritor do mundo!
Quem sou eu para contradizer juízo tão categórico? Como duma outra vez em que o silêncio se interrompeu com a chegada de duas espanholas de calções e indumentária campista. Queriam conhecer, ver gente, tomar o pulso à vila, conversar. Pediram duas cervejas, mas não se foram sentar na mesa da direita, queriam antes ficar de pé, frente-a-frente. Muito directas, as espanholas.
- Qué hay para ver por aquí?
- Vociês son dondiê?
- Venimos de Madrid.
- De Madrid! Muy bonita, Madrid...
- Usted conoce Madrid?
- No. Solo las fiotios, todas muy líndias, muchos monumentios, mucha artie...
- Si. Nos encanta.
- Pues, pues...La artie encanta...
- Señor, se le olvidó a nuestra pregunta...
- Que pergunta?
- Que hay asi de más bonito y interesante para ver aquí...
- Aqui muchas playas, vila muy bonitia... El castielio...El rio...Los barcios fazen travessias para la otra margen, y tanbién fazen passeios en el Rio Miria...
-Y donde se pueden comprar las tarjetas?
- Desculpie, no ouvi bien. Vociê dissie tarjetas?
- Bilhetes  - disse eu de fundo.
- Tarjetas, tarjetas encuentria ali abaixio, suben esta ruia en frientie, despues viran a la esquierdia, descien siempre las esciadas y finalmientie encuentrian la tarjeteiria; mas tarjetas tarjetas solo amanhiana, a partir de las nuevie...
Não podiam deixar de estranhar tão exótico portunhol, porém sentiam-se fascinadas pela simpatia e candura do velho homem. Eu, afim de me aguentar, nem olhava, limitava-me a ouvir, só mesmo a curiosidade, que era tanta, fazia com que seguisse estoicamente a conversa. Também não me queria desmanchar a rir. Sentir-me ia mal com isso.
- Y para comer?
- La comidia del alentejio es muy buenia. Hay buenios restaurantiés aqui.
- Por ejemplo?
- Por ejemplo "La Fatieixia", al frientie del Caiés tiene muy buenio peixie...
- Usted dijo Cais?
- Si, si. Cais...Cais es en português...

Voltei no dia seguinte à noite, com o meu irmão. Quisemos variar a ementa, mas tínhamos poucas hipóteses: whisky não, vodka não, Gin não, vinhaça sim, cerveja sempre, ginginha sim, Martini sim, este fisicamente falando, pois víamos três garrafas numa prateleira por detrás do balcão, três garrafas. Ele teve a ideia. 
- Queres um Martini?
- Vamos ao Martini.
- Então são dois Martinis.
Olhou-nos como se tivesse sido atingido por alguma coisa que ainda hoje não sei precisar qual, via-se nele como que um remorso de inevitabilidade. Tão irreal e fora de tom como incompreensível naquele momento.
- Martini não há.
Olhámos um para o outro e olhámos para as garrafas. Engolindo em seco, perguntámos em uníssono.
- Não há!?
- As garrafas que estão a ver não são para consumo. 
Sentiu necessidade de se explicar.
-As garrafas só estão ali para compor o mostruário, para enfeitar, não as vou estragar compreendam... Então depois como é que fica? Não me levem a mal. 
Embaraçado, estava a ser sincero, desalmadamente sincero. Da nossa parte não queríamos de forma alguma, nem mesmo a brincar, estragar-lhe seu tão estimado mostruário, daí que a bem, e sem qualquer espécie de ressentimento, decidirmos voltar à Sagres, de onde aliás nunca tínhamos saído. Fomos-nos sentar. Bebemos as cervejas, conversámos. Pedimos mais duas, conversámos mais. Quando estamos juntos é raro pararmos de falar. Nem damos com as horas. Daí que não saiba dizer a quantas páginas chegaram ali as espanholitas do dia anterior. Vais ver agora como não te estava a mentir, disse-lhe logo assim ao ouvido.
Pediram dois Martinis. Não, não me peçam para dizer mais nada, não aguentei. Foi sair, disparado, como um míssil, porta fora. Confirmei mais tarde pela boca do meu irmão: "los Martiniés no puedien sierie, no son para consumio, sólo están aqui para enfeitiarie el mostruiário."

sábado, 7 de janeiro de 2012

Janeiras

Ontem só consegui espreitar de relance a SIC Notícias. Debate quinzenal na Assembleia da Republica. Os mesmos soundbytes de tantos outros debates quinzenais na Assembleia da Republica, existe certamente um arquétipo platónico para os soundbytes dos nossos debates quinzenais na Assembleia da Republica. 
Depois ainda houve tempo para as Janeiras, primeiro com Cavaco, depois com Passos Coelho. E conseguir ouvir da boca do primeiro ministro qualquer coisa como:"o povo tem de sentir estas medidas como sendo suas". Os salazarinhos gostaram.