terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Um Dia na Terra

1 - Nick Cave é um desses que sempre me marcou, já vem de há muito. Bom nos bons dias, perfeito nos maus dias - qual desinfectante para feridas complicadas, qual analgésico para frustrações -, vem mesmo a calhar ouvi-lo falar na canção como desafiadora da morte, a única capaz e com força suficiente para fazer arrancar a cabeça do dragão. Não que a ouvir Nick Cave já não tivesse sentido esse estado em que nos parece possível arrancar a cabeça a esse temível monstro que ainda por cima voa e deita fogo das entranhas. 

2 - Nick Cave sabe dar a canção às palavras, mas também sabe dar as palavras à canção. É desses poucos - onde incluo Johnny Cash, Neil Young, Nick Drake, Mark Lanegan, Leonard Cohen, Van Morrison, Jim Morrison, Bob Dylan, Bruce Springsteen, Fausto, Sérgio Godinho, Serge Gainsbourgh, Paolo Conte, Chico Buarque, entre outros tantos; e não incluo tantos outros que são muito boa gente, certamente, até porque têm muito boa imprensa, mas de onde, enfim, ou muito me escapa, ou lhes falta um qualquer destes dois atributos para completar a equação, sobretudo dar a canção às palavras. Já nem falo dessa força, dessa fúria, desse intento visceral, da sentida inspiração, da mesmo que momentânea iluminação, da capacidade que nos faz ao menos acreditar que, se não é tudo possível, pelo menos é possível qualquer coisa, quanto mais não seja ouvir uma canção que nos encha as medidas. Isto com o maior dos pessimismos, claro, com a absoluta descrença do falhanço. Com tudo o que Nick Cave tem criado desde os Birthday Party. 

3 - Junto ao poder do cinema, à forma como nele se pode projectar o valor do som e da imagem em sua gramática própria fundida às da canção e da palavra. Nick Cave diz que passa o tempo emerso a escrever, da escrita surgem as canções. Da vida, da morte e do porquê disto tudo ser tão escuro, tão negro, confuso, perdido. No labirinto de Cave, o que não é lúdico pelo seu humor tão negro, é trágico nesse sentido poético do termo, onde a saída é a sublimação do sentimento que não há saída. De onde se impõe por exemplo aquele encandeante acorde de orgão de Warren Ellis. Ou aquele final onde se completam e colam as diferentes peças do filme com a naturalidade como se explica a Forma da canção. 

4 - Outra coisa são as palavras que trazem de dentro profundidades inauditas. Mas eis que entretanto as ideias já entraram, tomaram parte na casa... Verdade que vieram de dentro, seguindo a intuição segundo seu preceito de pensamento total concentrado, de expressão da sua e da nossa singularidade. Porque só nos conhecemos a nós próprios, quando, enfim, ainda não nos tínhamos conhecido.

5 - Isto num dia de nevoeiro, Nick Cave falava do tempo, da forma como temia a natureza a partir da janela de sua casa frente ao mar na cidade inglesa de Brighton. Eu pus-me a pensar que sim, que havia ali esse nobre velho sentimento respeitoso do temente a algo que nos ultrapassa e nos é incomensuravelmente superior - algo bem próximo e descendente directo desse antigo temente a Deus com que o homem se tomava perante a sua real insignificância, e que hoje faz condão em esquecer e ignorar... Depois, ou cada vez mais de vem em quando, lá vem a "velha" Natureza ser lembrada, antes de mais nada, num qualquer alerta vermelho. Depois... Cave falava nas nuvens que cada vez mais se vêem no céu a ameaçar a catástrofe. O que da Natureza e por sua natureza vem de quem está habituado a enfrentar dragões. 

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PS: Este post vai atrasado, este blogue não é pago, e com isto aproveito para dizer que ainda há uma sessão diária do filme às 20 horas, enquanto houver sessões e enquanto houver salas... 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

F



Comecemos pela Estrutura literária, essa maquinaria de realidade em F, de Luís Seabra. Uma lógica totalitária de que perigosamente nos aproximamos hoje quando a mentira é escondida por cosméticas, por forjados factos, por novas palavras para dizer o contrário do que significam, onde a orwelliana novilíngua ganha outras novas audaciosas cores. Tratando-se F de uma obra sobre o totalitarismo num futuro possível de estado policial total (com 10 % da população presa, todo o restante é suspeito) onde o único escape possível é o espaço do sono e do sonho por onde o detido se pode, enfim, libertar, mas onde o pesadelo é o único (elo) possível para o estado de vigília, qual teste de stress para os perigos da selva e antecipação dos piores cenários - de tortura, de medo, pressão constante da vigia e delação - de pesadelo como única chave dentro do pesadelo, o medo como única chave dentro do medo. Neste aspecto F remete-nos ao fascismo e estalinismo, entre outros totalitarismos, aos métodos sádicos de uma PIDE ou de uma Stasi. Mas não fosse apenas esse passado que nos assombra, não, para quem ler bem, em F é o presente que nos assombra. O presente como um futuro que temos muito por onde suspeitar, e se não assustar, pelo menos prevenir. Temos no presente o exemplo das prisões privatizadas de certas zonas dos Estados Unidos, bem dentro da lógica do lucro neoliberal, podemos supor um presente-futuro por essa mesma lógica corporativa que cada vez mais nos tolhe a esperança, que toma conta de nós próprios e dos nossos dias, dos nosso próprios governos, da Democracia, que dá-nos cabo da liberdade - ao que se torna implícita uma certa ideia de prisão, que neste plano inclinado por onde tudo piora, e tomando conta da linguagem, como bem sabemos que toma, pelo mecanismo da propaganda, pode adquirir no Estado Policial outros contornos mais explícitos. 
Esses mesmos contornos tomam mesmo forma em F nos orwellianos Politique Nacionale de Regroupement Préventif, Ministére des Libertés et des Privations Publiques, Ministére du Conformisme, bem como nessa lecture contrante que nos lembra, e de certa forma remete, para esse dois minutos de ódio de 1984, de George Orwell. mesmo que numa lógica ainda mais sádica e perversa...

Quanto mais não seja porque F é sobretudo um romance de Estrutura, o que caracteriza a verdadeira literatura, que não se resume apenas ao que se passa e acontece, ao biográfico, ao arbitrário, ao aleatório, ao prosaico da vidinha. É a Estrutura que verdadeiramente comanda e distingue a literatura, que de certa forma protege a literatura, que ajuda a erguer a literatura, que torna a própria literatura como uma máquina da (sua própria) realidade. Em F a Estrutura é pois esse motor, força implacável que se autonomiza em si própria, que cria as suas próprias regras, que nunca se desliga do seu todo, do seu propósito. 
Pessoalmente, numa obra gosto de observar de perto o "como é feito", ou o bem feito, se quiserem, e a verdade é que não há uma costura, como li algures numa das muitas críticas francesas à obra, tudo é feito de um modo e precisão clínica, há em F um sentido de economia, síntese, concisão, precisão e eficácia que o tornam absolutamente vertiginoso, mas vertiginoso em seu duplo sentido do termo - velocidade de leitura, e vertigem perante o abismo lá em baixo...

Mas voltemos ao presente, ao (nosso) mundo com esses certos dirigentes e funcionários das corporações que nos mandam e comandam os dias, quais oligarcas, o nosso sistema económico, e, cada vez mais, o nosso sistema político, já para nem falar na massiva propaganda. Têm para isso esse bom veículo: os idiotas úteis e "úteis" que não têm o que nunca tiveram nem podem ter na vida: uma voz própria. O que não quer dizer que não tenham uma voz, e uma voz bem mais forte que a nossa: a voz da corporação, da organização, do orgão, da empresa, tomado com princípio, meio e fim de todas as coisas. Mas não só, também como alimento de onde extraem a energia, a razão de ser, de estar, de viver, sentido (único) de utilidade, até mesmo, vá-lá, de um certo módico de talento, e também, porque não, desse génio perverso que mais não vem que desse tão forte e puro instinto de sobrevivência de todos os medíocres deste planeta. Sempre e sempre na defensiva, claro, pois nada existe fora da organização. Onde a liberdade, qualquer forma de liberdade, por mais ténue que seja, é tomada como a verdadeira inimiga, o alvo a abater. À qual o medo, o terror e a constante suspeita são a única possível e eficaz forma de a poder neutralizar e domesticar. Porém é preciso mais alguma coisa, de forma a tomar a tarefa possível, para organizar (desorganizando), para legitimar por fim, a organização totalitária é precisa a mais intrincada burocracia.  
A isso, normalmente, há um dado que escapa: a burocracia tem de ser incoerente. Também não deve ser claramente inteligível (apenas o suficiente) e deve ser pautada pela disfuncionalidade, uma disfuncionalidade não assumida. Ou seja, a matéria de aperfeiçoamento deve confundir-se com sua matéria de confusão. Com coerência não sobra espaço para manigâncias. Com coerência há um módico de regras, um jogo de causa-consequência, um mínimo sentido de regra e de justiça. Sobra assim pouco para o escorregadio, para a calúnia escondida, para o veneno sub-reptício. Porém a própria mentira, como algo assumido, assumiria sua verdade, claro está, a novilíngua-propaganda tem de dizer que sua mentira intrínseca é verdade. Que nada é digno de ser questionado, algo que só a burocracia legitima, alimenta. Todos os átomos dessa Prisão de Schendorf - com os seus detidos e seus polícias e directores e vigilantes, todos delatores - estão encerrados nessa mesma estrutura molecular de Prisão Ideia. O princípio, o meio e o fim último só querem dizer uma coisa: Prisão. Todos estão presos. Lá fora também. Da própria prisão já não há escape. Onde tudo (nos) é vigiado. Onde se é detido em intrincados mecanismos burocráticos, claro está. Numa sociedade onde o delito maior é ir, nem que seja ao de leve, contra essa mesma ideia de sociedade como prisão. 

Não é preciso irmos muito longe, basta pensarmos na nossa PIDE, e não é preciso dizer mais nada... Claro que é necessária a Mentira para simular as formas. Claro que é necessário o Terror e o Medo para não dar espaço ao pensamento. É necessário que o individuo se renda, mas que se renda incondicionalmente. É preciso encerrá-lo, completamente, sua prisão intrínseca não deve gerar aberturas, se o gerar cá fora, é preciso pois encerrá-lo dentro. Nesse mecanismo, político e/ou corporativo, o indivíduo não conta, não existe. É preciso jogar com os piores fantasmas da mente, com o modus operandi da constante e absoluta desconfiança, com a quebra de toda motivação, pela mais aleatória imprevisibilidade onde cada um sabe que pode a qualquer momento ser apanhado pelas engrenagem implacável de uma sociedade prisional totalitária. 
Remetemo-nos aqui para romances como 1984, ou Brave New World, ou mesmo o Processo de Kafka, entre outros. F deixa um alerta claro, um aviso. Deixa-nos de certa forma em sentido, mas por outro lado não nos deixa de deslumbrar em seu jogo cirúrgico, que nos manipula e leva exactamente como e para onde quer, em termos físicos e como ideia: para a prisão. Ali estamos tão desorientados como o advogado Linz, ou o Director da prisão Boehm, ou o preso F, que tem o verdadeiro poder, e é muito mais que um preso, e mais não digo. Mudemos de assunto.

A pena do escritor parece conhecer aqui cada palmo de terreno, seu próprio tabuleiro de jogo. Comanda e domina os recursos com uma notável lucidez visionária, ao mesmo tempo que em torrente (não confundir com torrencial), cadência e ritmo uniformes, mas impiedosamente incessantes, a matéria é contada nessa tal dupla vertigem com uma notável gestão dos tempos. A própria informação (elíptica) é pois gerida por essa já tão nomeada Estrutura que se ergue a alta altura e que a própria leitura completa e integral da obra não deixa ver completamente. Nem poderia ser de outra maneira, de outra forma não haveria forma de deixar a via aberta à liberdade, ao sonho, à ficção. O veneno de F traz também a sua cura. 

Falando em Estrutura, outra referência menos óbvia, mas que está, a meu ver, bem presente, é Alfred Hitchcock, muito mais que a referência a David Lynch que tanto se repete na imprensa francesa. Não há em F uma ponta solta, mesmo que tudo possa ser, enfim, sonhado, o que há é sim essas típicas cadeias de suspense que arrasam "cenários" criando novos "cenários" com novos intrigantes (e intrincados) elementos num continuum inédito, intrigante e tanto ou quanto assustador. Há ali suspense, não qualquer ideia de terror subjacente, tudo se alicerça sim numa lógica geométrica cuja solidez, comprovada, em nada é garantida, e onde a cada instante, o chão pode cair debaixo dos nossos pés. Sim, estou a pensar em Vertigo - que devia ser traduzido em português como Vertigem mas saiu esse "misterioso" A Mulher Que Viveu Duas Vezes
Em suma, é como se a ideia de Prisão per se, até ás suas ultimas consequências, constituísse o próprio MacGuffin da trama. Problema é que o espaço dado à adivinha e respiração é muito pouco, como é óbvio. A absoluta claustrofobia prisional assim o impõe. Contudo, esse claro, audacioso e mesmo intrépido jogo de adivinha, não tem como propósito o seu próprio adivinhar, daí o MacGuffin. 

Franz Kafka é presença ainda mais forte, sobretudo pelo seu lado intrigante e obsessivo, pelo seu lado lúdico perante o horrendo, numa certa forma como somos martelados pelas palavras, na impiedade bizarra e ao mesmo tempo livre e estranhamente objectiva. Porém, a meu ver, a maior influência de F - não tanto no estilo, mas sobretudo na forma e na ideia - está em Jorge Luis Borges. Borges não apenas pelo labirinto, que existe e tanto nos perde, mas sobretudo porque paira na obra como um todo, e assim no seu todo, marcando o início e o fim de F. Começando na frase inicial - "A certeza de que tudo está escrito nos anula ou faz de nós fantasmas" - que ao longo da leitura cada vez mais nos surge desligada da obra, mas que se introduz (diria que se injecta) em seu final para pôr os pontos nos iis - calibrando tudo em seu todo de sonho e/ou pesadelo - como Literatura, Estrutura, máquina literária total. 
Esse epílogo de F, borgiano quanto baste, é a centelha, a margem de esperança, esse céu que se abre sobre a Prisão de Schendorf e sobre nós com ela. E como Borges também tinha seus pesadelos, essa ideia do não está nada feito, é precisamente essa mesma mensagem de esperança que se deixa em aberto na leitura. De esperança sim, mas também de desafio, de mote, de urgência. Esse aviso que também é uma realidade: não está nada feito porque na realidade não está nada feito - a própria ideia de que está tudo feito em tudo carece de prova, problema é que nunca prova coisa nenhuma - mas sobretudo porque em si a ideia de que está tudo feito é a mais pura receita para a auto-anulação, para a renúncia do presente, para a arte de manipulação e lavagem cerebral, para a propaganda da mentira, em suma, para o desastre. A própria linguagem, no seu quê de jargão, exprime o óbvio contra tanto nariz empinado que é muito boa gente que para aí anda: se pensamos que está tudo feito, está tudo feito... 
Como se a liberdade já estivesse construída e não estivesse por construir, como a liberdade não fosse algo que se constantemente se conquistasse, como se a liberdade não fosse em si uma ideia de verdade. Sim, a ideia que está tudo tudo feito é apenas uma ideia de prisão...