sexta-feira, 19 de abril de 2013

Pronto


Chegaram*:

Um Elmore Leonard mesclado a "wise guys", detectives, Ezra Pound, Miami, Itália e o que ainda não sei.  

O clássico que inaugura um "género". Quase construído em diálogo, "The Friends of Eddie Coyle" de George V. Higgins's é daqueles que fizeram escola. Antes de pesquisar fui lá pelas referências: do Leonard, que encontrou nele chaves decisivasDe Norman Mailer, David Mamet, de um Anthony Bourdain em Boston, de Dennis Lehane, de Quentin Tarantino. Reparei que as duas primeiras palavras do livro são Jackie Brown

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* -  Escritores à parte, pareço encalhado na fórmula. Acabada "A grande arte", começo "Mentiras e Diamantes". Com balanço... 

domingo, 14 de abril de 2013

O Caderno

Arrancou a folha do caderno grosso de argolas. Era um caderno antigo, tinha-lhe chagado à mão como tudo o que aparece: do nada, como se se insinuasse. O caderno estava escrito há muito, dado como terminado, fechado, quase selado, com uns poucos espaços aqui e ali: dois quartos de página, um terço de página, uma páginas e uma página em branco. Gostava daquele caderno, fora caro, era de desenho, mas tinha gostado naquela capa preta dura e das folhas de papel grosso a darem força e conforto à caneta. 
 Não se devem ter dado mal, tanto que finito e escrito ainda não tinha sido fechado numa gaveta, perdido ou sequer mandado fora. Conta ter sido caderno amigo, companheiro, bastava olhá-lo e logo vinham-lhe à memória sensações de familiaridade e vizinhança de mochilas, viagens, relações e três apartamentos em seis anos. 
Arrancou uma folha sem o perceber, era a página por escrever com um quarto de página livre do outro lado, espaços em branco como intervalos de azul entre céus carregados. Achava ali uma oportunidade de sobrepor um novo tempo ao tempo. Só a letra se mantinha o que era: execrável. Eram as nuvens escuras, mil vezes o computador, tem ao menos forma legível, e de apagar, e de se voltar atrás. 
Tinha pois a folha separada em seu poder, puxou-a a si sobre o caderno para a posição correcta para começar. Caderno sob a sua mão esquerda sustentada pelo joelho, mão direita ao ataque, cómoda como ele, deitado na cama sobre a almofada, e o candeeiro à direita a dar luz ao acontecimento, qual terno ombro amigo.
Escreveu - pois escreveu - letra pequenina, austeridade da folha para o que queria debitar, escrevia era três vezes mais pequeno do que cinco anos antes. Só a letra, tenebrosa, mantinha um certo padrão estético e temporal além da tinta preta. Do mal o menos, folha em branco é que não, era ver as letras umas atrás das outras, activas caldeiras vulcânicas, explodidas pelos dedos, seguidas como cardumes, tempestade jurassica de estrelas cadentes...
Virada a página, continuou na mesma cadência, na outra página, a branca, de um terço fez com que a letra pequena atascasse ainda mais na falta de espaço, fugindo pelos limites, qual trepadeira, fazendo do horizontal, vertical. Foi quando ele reparou que a folha encaixava nas argolas como se nunca fora arrancada. Possível, mas curioso. Já sem espaço na folha, ia experimentar um teste de aderência, assim como se fazem aos pneus de competição. O teste consistia em retirar a folha do caderno e voltar a colocá-la outra vez na mesma posição. Mecânico e às tentativas. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes, nada. Não só não conseguiu, como reparou que para voltar a conseguir, só no paciente exercício de introduzir a folha para lá da barreira das argolas, o que implicava passar para o outro lado a parte rasgada pelo arrancar das argolas. Seria fácil numa folha fina, naquela, pelo contrário, esbarrava contra a argola. Muita paciência era precisa quando entrava uma parcela da folha no outro lado e logo saía outra neste exercício inútil onde o todo o tempo se desperdiçava. Tentou dezenas de vezes, para ter a prova, para perceber como o fizera antes sem pensar e ou a mínima ideia do que estaria a fazer. 

A resposta, tinha à frente do nariz, óbvia como o encaixe da folha no caderno. Era a escrita, o comprometimento com o texto, na possível consumação, naquele preciso momento, de um novo passo iniciático. Fora ele mesmo que o escrevera. 

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Ler a Voz

Ler deve ser mais importante que escrever. Claro que escrever muito é condição não apenas de escrever bem, como de o saber fazer a sério; como o músico que tem de praticar constantemente. 
Outra coisa é a Voz de quem escreve, ou o Som de quem toca. Não se alcançam esticando o braço, distam milhas, anos de distância. Para quem escreve é trabalhar muito, escrever anos e anos a fio, tempo indeterminado. E talvez daí sim: a mão certa, o apuro, a precisão e técnica no manejo do sabre...
A ler não encontramos a Voz, mas podemos encontrar (as) vozes, distintas vozes, que nos mostram o que é ter (um)a voz. Aí já posso esticar o braço. Dou logo com A grande arte. 

*

Se baixares a guarda não te esqueças onde deixaste as armas.

sábado, 6 de abril de 2013

Dalton Trevisan




Via Tempo Contado e Antologia do Esquecimento fiquei com o escritor fisgado. Coincidiu com a atribuição do Prémio Camões 2012. Pouco depois, não me recordo em que morada , li de uma promoção de livros de Dalton Trevisan no meu bairro, na "minha" livraria, a Livraria Ler a quem sempre dou prioridade. O preço era de ir a correr: 1 euro. Lá constantei que não era um, mas dois euros e meio. Mas não por um livro de contos mas dois: o "Crimes de Paixão"(1978) e o "Ah, é?"(1994). Quis a sorte que um amigo me oferecesse pouco depois o "Cemitério de Elefantes"(1964), outra pechincha: três euros e meio... Juro que é um dos melhores livros de contos que se pode ler em vida. Exemplos:

Bento mastigava a raiva no prato de feijão. Envelhece, ambos intransigentes no seu rancor, o ancião lépido aos setenta anos e José, bigode grisalho, na flor dos quarenta. Tão  diversas, são todas iguais nos olhos que enchem a cara miudinha - o olho aflito do adulto. (pag.35) 

A fumaça branca na sua boquinha pintada trazia até ali quente aconchego da cama. Os cães gemiam e arrastavam a corrente, nem a voz da dona os aquietava. (pag.  46) 

Mil promessas no diário: Não fumar mais que três cigarros por dia. Copia pensamento na revista: O amor é sonho nebuloso. (p.79) 


No cartaz a fotografia colorida de Elza, quase nua: Estrela do bailado afro-brasileiro! Ao batuque do tambor entre as piadinhas cruéis da canalha, saracoteava pobre imitação de hula-hula. (p.87)

No silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de cada um, assombrados com o mistério da noite, o farol piscando no alto do morro.(…) O vencedor descasca o ingá, chupa de olho guloso a fava adocicada. Jamais correu sangue no cemitério, a faquinha na cinta é para descamar peixe. E, aos brigões, incapazes de se moverem, basta xingarem-se à distância. (p.93)





Por vezes cómica, outras vezes melancólica, frequentemente nostálgica, esta prosa tem o mérito supremo de respeitar a vida na sua essência temperamental. O mais estranho é que Dalton Trevisan tem a capacidade de nos desenfastiar da realidade mostrando-nos a realidade. (...)
Compreendemos que a rua é a casa do contista, os episódios desenrolam-se a partir da relação entre os elementos que a compõem revelando, por vezes em meros pormenores na acção dos personagens, que noutras circunstâncias dissipar-se-iam e passariam despercebidos, a matéria com que se cozinha a humanidade.

Dalton Trevisan não dá entrevistas nem se deixa fotografar desde 1972. É um desconhecido conhecido, anónimo à sua maneira. Quem o ler seguindo quem verdadeiramente sabe não terá dificuldade em compreender o porquê de tanto esconderijo. Basta dar com a riqueza das histórias, dos personagens, das situações que tão bem retratam o viver no seu  tanto de estranho, inusitado, aleatório, caótico. Sabemos que a realidade supera a ficção, e Dalton Trevisan parece ser o dono da chave, a esponja que tudo capta. Mas com uma condição: a de ninguém o ver, respeito, ele está a trabalhar, e é um feiticeiro, não quebremos o feitiço. E é um caçador, não pode ser visto pelas presas em seu habitat, lugares onde ele sabe encontrar os espaços com os olhos fechados.... Para os amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos, o Dalton anda ou andará por aí, achá-lo é que é complicado mas também não é assim tão difícil... Sempre irá às suas duas livrarias habituais, ao Mercado (de Curitíba), transitando um pouco por todo o lado da cidade e arredores. Vegetariano plena em forma aos 87 anos de idade, Trévisan é homem lido e tido em literatura mas não só, esponja que é lê os jornais todos, é cinéfilo inveterado. Depois no escrever é absoluto perfeccionista, buscando a palavra certeira como o único dos tiros possíveis, no que é preciso inovar, ser pioneiro, procurando a síntese total, potenciando a palavra ao máximo reduzindo as palavras ao mínimo, e nem uma vírgula a mais. Nunca está perfeito. Nunca. A náusea é tanta que toda a obra é constantemente reeditada enquanto se vão construindo novos edifícios, novas estruturas, contam-se histórias de edições antigas que comprou ao leitor sortudo e desprevenindo oferendo a (boa) nova. Claro que o contemplado não pode imaginar o que o contempla. 


* - Recomendo vivamente também os posts do Âncoras e Nefelibatas à volta do escritor e da sua Curitíba, bem como o artigo de Alexandra Lucas Coelho. Ou este documentário adoçante.