sábado, 31 de dezembro de 2011

2011


2011 foi um ano muito difícil, tramado pela crise, pela chegada da Troika e pelos últimos actos deste governo assustadoramente mau. No resto houve catástrofes como todos os anos. O Facebook continuou a sua cavalgada até onde não se sabe onde.  Infelizmente o Porto foi campeão, o Barça também, o Man United também, o AC Milan também; o Corinthians, vá-lá, ganhou no Brasil, se bem que eu quisesse que ganhasse o Fluminense ou o Vasco, o River Plate desceu de divisão na Argentina. O Sporting parece que se salvou da depressão em que andava metido e deixou-me finalmente entusiasmado como não me sentia desde que o Peseiro me meteu sonhos à frente dos olhos para os esfarelar logo a seguir. 
Morreram heróis como Sidney Lumet, Sócrates, Peter Falk, Steve Jobs, Christopher Hitchens e Vaclav Havel. Há esta novidade do cancro nos presidentes dos países da América do Sul, e se as detestáveis teorias da conspiração não merecem aqui alguma legitimação, também não sei onde a poderão merecer. 

Em termos de leituras, 2011 foi um ano de descobertas, algumas tardias e de palmatória: Machado de Assis ("Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro"), Herman Melville ("Moby Dick" e "Bartleby"), José Rentes de Carvalho ("La Coca"), Martin Amis ("Money" e "Koba, The Dread"), Knut Hamsun ("Fome") e Michel Houellebecq ("A Possibilidade de uma Ilha"). Acabo o ano com um dos meus escritores preferidos, Saul Bellow e "As Aventuras de Augie March", que tanto promete

No cinema vi muito poucos filmes para andar a fazer balanços, mas posso dizer que foi um ano raro. Voltei finalmente a ver um Monte Hellman - do qual "Two Lane Blacktop" há uns anos na Cinemateca se tornou dos filmes da minha vida. Voltei a ver um Terrence Malick, só uma vez, o que se calhar é insuficiente para um filme com a complexidade de "The Tree of Life". Gostei do "Carlos" de Olivier Assayas e vi um dos melhores filmes dos últimos anos - "Sangue do Meu Sangue" de João Canijo. O ultimo do Cronenberg foi uma decepção, comparado com os filmes anteriores; o ultimo Almodóvar reza que sim, mas não vi nem vou ver; devia ter visto o ultimo Woody Allen, mas agora só em vídeo. Nanni Moretti entrará no meu 2012.

2011 fica-me ainda na memória como o ano em que descobri "The Wire". Não faço comparações com "The Sopranos", "Mad Men" ou o "The Office" inglês, só para falar nas séries preferidas, mas nenhuma me bateu forte como esta. Em televisão nunca tinha visto nada assim, que conseguisse sequer ao de leve retratar a realidade - nos seus desequilíbrios e ambiguidades - de uma forma tão realista, estruturada e credível. Deixando no fim um sentimento de ausência, de saudades daquelas "pessoas". Nisso sinto-me com sorte, ainda me faltam ver a 4ª e 5ª séries. 

Agora vem um 2012 cheio de perigos, social, financeira, económica, política e moralmente falando. Ainda assim, há muita vida além da merda que nos trazem validada. Ando estranhamente optimista para 2012, um optimismo pouco racional, muito moderado, muito temperado, muito fraquinho, o meu optimismo.


sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Bacalhau com batatas



São livros estáticos, com diálogos em que se repete mil vezes a mesma ideia, se repisa uma questão como fazem os bêbedos. Entretanto, qualquer coisa como uma neblina se vai erguendo da monotonia. E aí atinge-se o que Pessoa visava quando do "sino" da sua "aldeia" dizia que a "primeira pancada" tinha o som de "repetida". É o efeito longínquo da dolência, da balada. Em todo o caso, a neblina leva tempo a erguer-se. Definitivamente, Hemingway era bastante ignorante e de inteligência escassa. Os seus livros só podem agradar inteiramente aos que em cultura e inteligência nos estão aquém ou muito além da média. Estes últimos gostam, como o ricaço gourmet gostava de um prato de bacalhau com batatas. Por desfastio. 

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 1Livraria Bertrand, 1980, p. 289.

Sempre achei Hemingway um chato, e tenho os romances quase todos dele, que me ficaram do meu avô. Dei uma oportunidade a cada um, até mais do que uma, larguei-os a todos. São a meu ver romances frágeis, deslumbram-se demasiado consigo próprios, com tanta graciosidade, engenho, talento e virtuosismo, falta-lhes vigor, verdade, vida, osso e músculo - o que é curioso numa figura como Ernest Hemingway, homem de experiências e virilidades. 
Com efeito, os contos que conheço de Hemingway são excelentes. Ali onde tudo se joga no poder de síntese e não é dado espaço a "poses", leio um escritor mais a sério, a valer, dos muito bons. Por exemplo, no assombroso "Os Assassinos" ("The Killers" no original), a tal neblina fica no final aberto a pender para o trágico - é uma neblina mistério, que nos deixa intrigados sem que nos apeteça passar ao conto seguinte. Nos romances, a neblina é outra, chata como a potassa. Mas ah e tal, faz parte do cânone...
Obrigado Vergílio Ferreira, ao menos sei que o problema não é só meu.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Casos

Meteu na cabeça, tem de ter razão. Nunca dar o braço a torcer. Ponto de partida e chegada porque sim, arma-se em combates de semântica, muitas vezes sob pontos de vista estapafúrdios e argumentos indefensáveis que quando expostos à sua fraqueza derrotada defendem-se em enérgicos desvios de conversa e projecções de sacos de areia para os olhos num eficaz, rápido, enérgico e furioso instinto indefensável. Querer é poder. Vem daí o aprendizado da finta, da dissimulação e em ultima instância do instinto detonador da falsidade que do tão grande desígnio do eu eu mais eu, como que se impera no seu domínio. Isso é a tua opinião, atira, e a armada da semântica ganha outro fôlego. É quando eu largo e desisto - penso em respirar. Toma lá a espada, é de latão. 

заботиться





sábado, 24 de dezembro de 2011

Natal


Não sou pró nem anti-Natal. O Natal é bom se juntar as pessoas em bom espírito, comunhão, afecto e conversa, se houver crianças a vibrarem como eu vibrava, melhor ainda; se os abandonados à miséria, ou os sem abrigo sentirem algum calor humano e companhia melhor ainda...
O Natal é mau se – como é muito habitual – der azo a todo o género de hipocrisias de gente - familiares, conhecidos, colegas de trabalho - que não se grama nem tolera; ou se se servir de um consumismo desenfreado e exibicionismo parolo. Porque cansativo é sempre, não conheço ninguém a quem as maratonas de Natal não sejam cansativas. Se o cansaço é do bom e salutar isso já são outros quinhentos.

Eu vou passar o Natal em família, comer e beber bem. Desejo um feliz Natal a todos menos aqueles a quem não o desejo de todo, infelizmente não são poucos. 
Claro que o Natal é quando o homem quiser, mas a mim nada bate um bom de dia de praia na Costa Vincentina. Isso é que era um presente: toma lá um grande dia de praia. 


quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Bios



Deitei-lhes hoje uma vista de olhos e parecem-me imbatíveis. Como não sou grande adepto de biografias e biopics, a crítica 5 estrelas de Mário Lopes no Público à auto-biografia de Keith Richards, de fazer fazer crescer água na boca, ou os eloquentes elogios de MEC à biografia de Luiz Pacheco por João Pedro George, nunca seriam por si só suficientes. Sempre são quase 50€, tenho em casa uma extensa fila de espera, há os livros que quero comprar, os autores que quero conhecer, sou pobre. Mas ter-lhes posto a mão em cima e lido dois ou três parágrafos de cada um vai agora obrigar-me a ler tudo o resto dos dois. Provei do veneno. Foi fatal. Já não tenho hipóteses.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Teorias


"Teorias" de manuel a. domingos tem poemas que gosto muito, outros nem tanto, é curto e breve e no final fica-se com vontade de prolongar o prazer. Sabe a muito sabendo a pouco. Destaco o efeito da ironia, o inusitado, a escrita seca, afiada, a espontaneidade, o ritmo fluído. 
Edição de autor, limitada a 100 exemplares, "Teorias" pode ser adquirido aqui. Abaixo fica um dos meus poemas eleitos.

Os meus fantasmas

Uma caneta
que não escreve
no momento
que o poema 
aperta

Cães a ladrar
para espantar a noite
que aperta contra 
a caneta

que não escreve

na noite 
onde cães ladram
para espantar
a caneta
que não escreve
o poema

que aperta
que me aperta

E a caneta
que não escreve
E os cães a ladrar
para espantar
a noite
para espantar 
a caneta que mesmo

assim não escreve
o poema 
que aperta


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Ossos

Tenho um problema num joelho a que nunca liguei nenhuma até há exactamente uma semana. Foram dias de dores altas, daquelas de ganir, daquelas que nos fazem rebolar como um jogador de futebol que tivesse levado uma valente cacetada. Ai o raio das dores. Aquilo sim é um aqui agora a que é impossível escapar, um não sais daqui, um agora é isto, aguenta-te e respira fundo. A melhor forma que tenho para descrever o pior daquilo é qualquer coisa como câimbras dormentes múltiplas, como se tivessem sido postas num pedal delay. Quando o tormento acalmava iniciava-se a alternância: dói aqui, dói ali, estala acoli, arde mais acima, pica mais abaixo, marioneta de cartilagens, articulações e tendões, fiquei logo a saber da pior forma como a dor num músculo da perna esquerda nos impossibilita de subir a cabeça na almofada da cama para sequer conseguir ler, que estar sentado é só durante pouco tempo e virado para a frente...Mesmo depois do hospital, mesmo depois das dosagens generosas de analgésicos e anti-inflamatórios. 
Os nervos também iam na enxurrada, inflamavam-se, caídos na armadilha do desgaste, caceteiro, mordendo o juízo, quebrando o sono a menos de duas horas seguidas, queimando todas as reservas de paciência. Que fazer? A solução só ocorreu a um médico grande amigo da família: talvez um calmante. Acertou. 
Foi tiro e queda, o arsenal de injecções, anti-inflamatórios e analgésicos teve finalmente a permissão para entrar em combate e foi como se o cavalo já estivesse dentro das muralhas de Tróia. Dormi a primeira noite da semana - a de Quinta para Sexta-feira. Quando acordei foi como um milagre erguer-me da cama sem ser preciso aplicar técnicas rotativas de jujitsu brasileiro para evitar as tais câimbras em pedal de delay. E conseguir pôr o pé no chão sem dores. E dormir mais ainda, de sol a sol. E depois noite adentro. E acordar ressuscitado. 


Só Sábado li os primeiros blogues da semana. Soube das péssimas noticias: morreu Christopher Hitchens, morreu Cesária Évora. Ontem morreu Václav Hável. Fiquei a pensar no aforismo "do que não me mata torna-me mais forte". Mas hoje morreu Kim Jong Hill, um assassino totalitário execrável demente filho da puta, ainda assim pronto a ser erguido à figura de deus daqueles milhões que tiveram o azar de nascer ali. Como quereriam ao menos ter um imbecil primeiro-ministro que sugerisse que emigrassem...

domingo, 11 de dezembro de 2011

103


Não resisto, há três anos que marco o ponto neste dia. Com a certeza de que vamos continuar a ter Cinema de Manoel de Oliveira. Filmes bons, outros não tão bons, uns se calhar sublimes, outros se calhar chatíssimos, mas todos a terem de ser tidos em conta. Clint Eastwood disse há pouco tempo que lhe quer seguir o exemplo. Há melhor exemplo?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Haja saúde

Campo de Ourique, você é de Campo de Ourique? Sou. Tive lá um restaurante, muitos anos. Estou a reconhecê-lo, respondi. Campo de Ourique já não é o que era, antigamente era muito melhor. Anuí e reforcei: agora quando se diz que se é de Campo de Ourique soa logo a coisa bem. E enquanto eu pensava em tias a apinhar cafés, ele continuou a repetir, antigamente era muito melhor...
O taxímetro já ia em mais de sete euros mas ninguém se arrepende disso quando tem um joelho desfeito. E quem diria que passados uns 15 anos apanharia num taxi o dono daquele restaurante ao Jardim da Parada. Junto ao clube dos que largaram o café, dos engenheiros desempregados aos 50, dos reformados à mingua, dos antigos trabalhadores da Lisnave, e mais umas quantas histórias complicadas.
No Marquês retoma a conversa, eu agora daqui a 4 anos reformo-me e vou seis meses para o Brasil, não faço mais nada, só praia. Pois faz muito bem. Faço muito bem? Olhe meu amigo, eu trabalho desde 1964...Silêncio, rotunda percorrida e logo subimos a Bramcaamp, viro a cara para o prédio de José Sócrates, mas foi de Passos Coelho que ele falou. Com alguma distância, que quatro anos passam num instante. Foi rápido até me largar. Quanto é? Nove euros. Então faça 10. Muito obrigado, juntou a nota numa caixa e daí se virou, simpático e ternamente enrugado - olhe, muita saúde, o que é preciso na vida é ter saúde, o resto...Eu não peço mais nada na vida a não ser saúde. Não, engano-me, há mais uma coisa que peço...Calou-se para eu perguntar o que era. E respondeu: mulheres, mulheres, com isso...Com mulheres e com saúde eu vou a todo o lado...Saúde, mulheres e não peço mais nada. Era agora outro homem por trás do bigode. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Sangue do Meu Sangue



Numa guerra sem quartel ao cliché, "Sangue do Meu Sangue" de João Canijo é um filme sobre o amor incondicional no seio duma família. Partindo dessa premissa, partilha da sua força, pathos e sentimento.
Truffaut dizia que se consegue ver numa tela de cinema todo o trabalho dum filme desde o primeiro momento, que está tudo lá, escarrapachado para quem o conseguir ver. Em "Sangue do Meu Sangue" consegue-se perceber em toda aquela densidade o trabalho aturado, a dedicação incondicional, a direcção de actores, a forma como estes emergiram nos seus papeis, o absoluto sentido do pormenor. Numa estrutura que não parecendo é absolutamente linear na sua concepção de tragédia grega. O que nos ilude e ao mesmo tempo nos emerge no filme é essa unidade suprema a que chamamos de cena, aqui tratada em todas as suas implicações, remetendo-nos um pouco ao cinema comportamental de John Cassavetes e ao realismo social de Mike Leigh. Há momentos em que podemos pensar que se está a ultrapassar a fronteira, a ir longe demais. Percebe-se mais tarde que se foi até onde tinha de ir e ponto final. Mais nos surpreendemos ainda com a forma como tudo se acaba por encaixar no corpo do filme, que afinal nunca sai do seu caminho, ainda que se perca nos seus meandros.
Filme de actores, onde praticamente todas as interpretações são sublimes - com destaque maior para a grande actriz que é Rita Blanco; Anabela Moreira não lhe ficará muito atrás, também gosto muito de Cleia Almeida, de Rafael Morais, de Nuno Lopes, enfim, de todos, cada um há sua maneira a marcar o filme aqui e ali em momentos - cálculo - de elevadíssimo grau de entrega e dificuldade, ilustrados e bem no documentário "Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor". 
"Sangue do Meu Sangue" é uma obra-prima, de longe o melhor filme que vi em 2011 e seguramente dos melhores que vi em anos. Quem embarca nos peditórios habituais que desqualificam o cinema português não tem bem ideia do que perde. 


Adenda: Fui ver a versão longa do filme, leva mais de três horas que mais parecem hora e meia. Não consigo conceber versão mais curta. Se o filme fosse de 6 horas, provavelmente pensaria o mesmo. 



domingo, 4 de dezembro de 2011

Sócrates (1954-2011)


Sócrates era com Zico o mais carismático daquela mítica selecção que encheu a tantos as medidas para o resto da vída. Com Falcão, Júnior, Éder, Toninho Cerezo, Luisinho, ali até o frangueiro Valdir Peres tinha a sua aura. Sócrates era o mais único deles todos. Ele era o diferente, o médico doutor, o democrata activista contra a ditadura, o instigador e líder da Democracia Corinthiana. Não sei se foi por isso que via os meus pais e amigos a gostarem mais dele que dos outros, o que interessa é que aprendi bem cedo a respeitá-lo. Até sempre, super-craque. 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Passo


David Cronenberg disse que uma das motivações para "Dangerous Method" foi trazer de volta à vida Freud e Jung. Se o objecto foi a curiosidade, pois muito bem, Freud (Viggo Mortensen nunca nos deixa ficar mal) está excelente, Jung (Michael Fassbender) não destoa, a fotografia é soberba, os diálogos espirituosos, o décor lindíssimo, falta o resto: "Dangerous Method" é um filme sem rasgo nem força que o sustente. 
Com uma Keira Knightley sempre em esforço – nos momentos de histeria então tem a convicção de Catarina Furtado – e uma trama  incapaz de se fazer valer que não em truques de marca, "Dangerous Method" choca um pouco com a realidade, que implacável nos mostra que neste momento há muito melhor cinema em cartaz.