sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Bacalhau com batatas



São livros estáticos, com diálogos em que se repete mil vezes a mesma ideia, se repisa uma questão como fazem os bêbedos. Entretanto, qualquer coisa como uma neblina se vai erguendo da monotonia. E aí atinge-se o que Pessoa visava quando do "sino" da sua "aldeia" dizia que a "primeira pancada" tinha o som de "repetida". É o efeito longínquo da dolência, da balada. Em todo o caso, a neblina leva tempo a erguer-se. Definitivamente, Hemingway era bastante ignorante e de inteligência escassa. Os seus livros só podem agradar inteiramente aos que em cultura e inteligência nos estão aquém ou muito além da média. Estes últimos gostam, como o ricaço gourmet gostava de um prato de bacalhau com batatas. Por desfastio. 

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 1Livraria Bertrand, 1980, p. 289.

Sempre achei Hemingway um chato, e tenho os romances quase todos dele, que me ficaram do meu avô. Dei uma oportunidade a cada um, até mais do que uma, larguei-os a todos. São a meu ver romances frágeis, deslumbram-se demasiado consigo próprios, com tanta graciosidade, engenho, talento e virtuosismo, falta-lhes vigor, verdade, vida, osso e músculo - o que é curioso numa figura como Ernest Hemingway, homem de experiências e virilidades. 
Com efeito, os contos que conheço de Hemingway são excelentes. Ali onde tudo se joga no poder de síntese e não é dado espaço a "poses", leio um escritor mais a sério, a valer, dos muito bons. Por exemplo, no assombroso "Os Assassinos" ("The Killers" no original), a tal neblina fica no final aberto a pender para o trágico - é uma neblina mistério, que nos deixa intrigados sem que nos apeteça passar ao conto seguinte. Nos romances, a neblina é outra, chata como a potassa. Mas ah e tal, faz parte do cânone...
Obrigado Vergílio Ferreira, ao menos sei que o problema não é só meu.