sábado, 18 de janeiro de 2014

Uma Cópia de Verdade



Orson Welles andou um filme inteiro a estudar falsificações. Histórias de cópias e falsários de tal forma complexas, intrincadas e substanciais que a determinada altura, como que sub-repticiamente, a pergunta impõem-se: e se a cópia, à sua maneira, se torna tão ou mais relevante que o original? Ou pelo menos fica o sublinhado em como determinado tipo de cópias acabará de certa forma por se tornar o seu próprio original. Para isso é preciso ver o exemplar do seu trabalho sobre o invisível mimetismo da grande obra de arte. Há também hierarquias para isso, claro, tem de haver. Hierarquias sustentadas no saber do falsificador em sua complicada tarefa do alcançar da veracidade - onde podem contar altos níveis de virtuosismo, minúcia e sentido de pormenor -, sendo o alvo mais ou menos atingido consoante o falso (a mentira) se consegue confundir com o verdadeiro (a verdade). 
O que pode ocorrer de duas maneiras: ou ludibriando-nos - por tempo indeterminado, quem sabe -, ou então assumindo sua natureza de cópia mostrando ao mundo todo o seu jogo. No primeiro caso, a ignorância do seu mérito maior é seu próprio segredo e assinatura (de excelência). No segundo, impõe-se essa tal hierarquia de aproximação ao verdadeiro. É quando podemos dizer: «é uma cópia de verdade!». Quando também podíamos dizer: «é uma cópia apanhada pela verdade». O que pode não ocorrer nas melhores falsificações. As tais que tão bem se confundem com o verdadeiro que a verdade mesma fica por revelar por tempo indeterminado.

            

Abbas Kiarostami em "Cópia Certificada" vai por aí de outra maneira. Aqui o faz de conta é uma possível e/ou impossível história de amor que acontece a determinado momento entre um escritor que se debruça sobre falsificações e uma galerista de arte que se interessa pela sua obra - onde se pode incluir um livro publicado sobre esse mesmo assunto. 
Resumindo: um escritor (William Shimell) e uma galerista (Juliette Binoche) que nunca se haviam cruzado até então - tendo-se conhecido pouco antes numa palestra do escritor - embarcam por um desses circunstanciais acasos da vida numa viagem de carro através da Toscânia. Conversa puxa conversa, muito acerca do assunto das cópias e falsificações, gera-se ao mesmo tempo um processo de empatia e envolvimento que tem seu ponto culminante* quando uma senhora num café os confunde com um casal de verdade. Se é apenas um acaso ou se a reflexão interior acerca do sujeito verdade versus falsidade (ou veracidade) teve sobre isso influência, isso agora interessa, podendo sempre ficar como tópico de reflexão. Interessa sim e muito, é o que aconteceu imediatamente a seguir, de somais importância em sua, passe o termo, singular singularidade: o exacto ponto de intersecção entre a realidade e o sonho, entre a verdade e veracidade, entre o original e a cópia. Esse ponto está precisamente ali, no seu assumir como um casal de verdade, eis essa a ponte para o outro lado. Afinal o assunto sobre o qual haviam falado e reflectido está mesmo ali à frente dos olhos, a poder ser vivenciado, testado, experimentado. Eles mesmos tinham ali a (sua) oportunidade (tão rara), eles mesmos podiam ser a cópia de um original, a cópia de um casal original. 
Há nos dois personagens (enfim, mais nela que nele) a tentação e o instinto de passarem para esse outro lado, de cruzarem instantaneamente essa ponte fictícia. Ela exteriorizando-o mais. Ele vivendo-o também, se bem que reflectindo bastante, sendo mais contido. Sim, podia ser um mote, uma mola, uma alavanca para uma história de amor. Porém um mote que abre em si todo um problema, quiçá irresolúvel, pois que assumindo-o como disfarce, o mesmo cai em si pelo mecanismo da verdade, ou dito por outra palavras, os dois não teriam assim nenhuma hipótese de prosseguir assim tão sublime jogo. 
Por outro lado, não assumindo o disfarce, e fingindo o amor como se tivesse realmente acontecido, acabam eles por entrar no âmbito do sonho. E no sonho, quanto menos sabemos que é sonho, quanto mais o sonho é fiel a si mesmo, à sua natureza de sonho. Não, o sonho aqui não é o sonho do amor vivido, isso podiam atingir eles acordados. Já o serem um casal feliz há muitos anos juntos, e com uma vida em comum completa e satisfatória, para dois desconhecidos só mesmo em sonho. Porém os sonhos apenas duram enquanto nos iludem. A cópia também, e como nos exemplos de "F Fake", também esta cópia (de casal) é suficientemente complexa, intrincada e substancial para acabar por desenvolver o seu próprio mecanismo, a sua própria história, o seu teatro. Eis o que assemelha as duas obras, o que as une até, pois tanto dois desconhecidos a fingir o casal perfeito como os falsários das grandes obras de arte têm em comum esse negativo da cópia. O mérito supremo de Orson Welles e Abbas Kiarostami é darem-nos a ver o seu lado positivo. 


* - o chamado plot point, que se pode ler em certos on writings desta vida, é uma expressão aqui perfeitamente adequada. A hell of a plot point, digo eu, ponham a hell nisso. Só duvido é que esteja devidamente enquadrado no ponto geométrico que certos gurus dizem que deve estar, mas isso é toda uma outra conversa.