sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O que não parece, é

Interessa-me pouco a escrita diarística como mero registo factual de eventos. Deixando o mais pessoal de fora, ou não engreno com isso ou não sei engrenar. Menos interessa o que vai para debaixo do tapete, ou coisa pior, tipo havia um bêbado na rua de madrugada, chegou-me ao correio uma carta das finanças, já não é a primeira vez que me falha este esquentador; ou o transito estava impossível e bem pior que em todas estas greves do Metro às quintas-feiras... Não vou duvidar do curioso para lembrança futura. Ler como se olha aquele álbum de fotos que como mais nada na vida nos atiça e reinventa (as) memórias. Pena que tão raramente me dê a esses trabalhos - duas ou três vezes por ano, se tanto -, mas quando eventualmente acontece, é sempre a mesma luta inglória a cada frase. Sobretudo por querer entrar pelo que escrevo adentro e depois ter o problema de não saber muito bem quando nem onde saio e o que quero ali é comer o bolo todo até ao fim. Para o texto o gozo do texto, enumerar factos não é propriamente escrever. O factual, na melhor das hipóteses, não me passa da panorâmica à vista do que já se vi. Na pior, é mais um burocrático aborrecido exercício, o que até faz mal, força o sistema nervoso. E então, como remédio, vai de meter ficção, truncagens e forjanços, muita sumária aldrabice para temperar o gosto e poder haver algum mínimo interesse no my own subject. Claro que nem todos somos parentes de Dom Quixote, nem sequer primos distantes. Nem de um David Foster Wallace com as suas mais de mil páginas a letra minúscula (dizem, ainda não folheei o livro). 
Disso da distância que nos dá o longínquo Foster Wallace fiz prova primeira há pouco tempo ao ler aquele muito bom ensaio sobre um famoso jogo Federer/Agassi. Ainda não fiz prova segunda, muito menos a verdadeira prova, que tenho fora das prioridades. Mesmo assim nunca se sabe, talvez o entusiasmo de Rogério Casanova e a recente leitura de Rui Ângelo Araújo façam com que um dia morda o isco. Ou se existir isso do tempo e da leitura certos para a altura certa, tipo colheita da Primavera (quem sabe?). O que não me parece. Ou então parece que não me parece. O não me parece choca com esse batidíssimo cliché que leio e ouço aqui ali de vez em quando: o de que o que parece, é. Já as variantes nunca se ouvem. Ou ouvem? Eu nunca ouvi. Nunca ouvi dizer o que não parece, é. Nunca ouvi dizer o que parece, não é. Mas na política, no futebol, nos negócios, em conversas subliminares ou naqueles normais palpites do real, quantas vezes não o ouço dizer: o que parece, é. O que se diz em jeito de adivinha adivinhada, de sabimento e conhecimento. Problema é as vezes em que o parecer se vê desmentido - muitas mais do que parecem, claro - e a realidade dá a ver, cristalina, que o que parecia afinal não parecia nada. E não parecia mesmo. Como dizia o mago João Pinto, o defesa direito: "prognósticos só no fim da partida". Não há cá testes a posteriori. Não há mas eu fiz um. Teste de quê? Um teste de realidade a posteriori, claro, e fazer um teste de realidade a posteriori assim agora, só mesmo com os exemplos acima citados, a contar da terceira linha do texto. Pois dito e feito, resultado unânime em quatro das prerrogativas: o que não parece, é. Vejam o bêbado, descobri quem era numa investida à varanda, e se vos disser o quanto não fazia a mínima ideia, o quanto tal nunca me passou pela cabeça... Ressalvo que tive de eliminar a carta das finanças, fez batota e aquilo nem é bem um roubo, é mais um assalto autorizado.