sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Aberturas

Num dia de Abril de 1957, pela hora da tarde, apareceu em certa aldeola da costa um carro aberto, veloz como o pensamento. 
Já alguém tinha dado por ele quando ainda vinha a distância, roncando pela estrada fora. De longe, como era vermelho, vermelho vivo, lembrava uma chama de rastilho a romper no asfalto, entre mar e cabeços. 
«Que terra é aquela?», perguntou uma rapariga que vinha lá dentro.
«São Qualquer-Coisa», respondeu-lhe o homem que a acompanhava. 
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Guida apreciou deveras este desenho de São Romão com a sua onda bíblica e as iras dos pescadores escorraçados. Deixou o abismo, mãos enfiadas nas algibeiras do casaco, em direcção ao automóvel.
Lembrou-se de perguntar: qual valia mais, o carro ou São Romão?
O carro. Em dinheiro aqueles dez ou doze casebres não dariam para o Talbot Lago, dois litros e meio, que estava adiante, no deserto. Nem que se juntasse toda a tralha de redes podres, covos de lagosta e uma ou outra embarcação de fundo chato. Nem assim, nem mesmo assim.
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Jogo que não tenha regra não é jogo. Jogo sem parceiro também não. Era o que se dava aqui: a jovem Guida batalhava com palavras e o amigo não mexia uma palha para a ajudar. Jogo sem parceiro ou jogo à espera de parceiro, por um lado; jogo sem regra nem desfecho, por outro. 

José Cardoso Pires, em O Anjo Ancorado