Via Tempo Contado e
Antologia do Esquecimento fiquei com o escritor fisgado. Coincidiu com a atribuição do Prémio Camões 2012. Pouco depois, não me recordo em que morada , li de uma promoção de livros de Dalton Trevisan no meu bairro, na "minha" livraria, a Livraria Ler a quem sempre dou prioridade. O preço era de ir a correr: 1 euro. Lá constantei que não era um, mas dois euros e meio. Mas não por um livro de contos mas dois: o "Crimes de Paixão"(1978) e o "Ah, é?"(1994). Quis a sorte que um amigo me oferecesse pouco depois o "Cemitério de Elefantes"(1964), outra pechincha: três euros e meio... Juro que é um dos melhores livros de contos que se pode ler em vida. Exemplos:
Bento
mastigava a raiva no prato de feijão. Envelhece, ambos
intransigentes no seu rancor, o ancião lépido aos setenta anos e
José, bigode grisalho, na flor dos quarenta. Tão diversas,
são todas iguais nos olhos que enchem a cara miudinha - o olho
aflito do adulto. (pag.35)
A
fumaça branca na sua boquinha pintada trazia até ali quente
aconchego da cama. Os cães gemiam e arrastavam a corrente, nem a voz
da dona os aquietava. (pag. 46)
Mil promessas no diário: Não fumar mais que três cigarros por dia.
Copia pensamento na revista: O amor é sonho nebuloso. (p.79)
No cartaz a
fotografia colorida de Elza, quase nua: Estrela do bailado
afro-brasileiro! Ao batuque do tambor entre as piadinhas cruéis da
canalha, saracoteava pobre imitação de hula-hula. (p.87)
No
silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de cada um,
assombrados com o mistério da noite, o farol piscando no alto do
morro.(…) O vencedor descasca o ingá, chupa de olho guloso a fava
adocicada. Jamais correu sangue no cemitério, a faquinha na cinta é
para descamar peixe. E, aos brigões, incapazes de se moverem, basta
xingarem-se à distância. (p.93)
Voltemos ao Tempo Contado, ao Antologia do Esquecimento:
Talento, originalidade, personagens inesquecíveis, a inesperada abordagem do vocabulário e da narrativa, o modo sintético, a forma de surpreender que só nos grandes contistas se encontra. (...)
Para desespero dos editores, neste tempo de volumes de setecentas páginas de muita parra, ele conta as suas histórias com extrema secura e economia, cada frase como que a explodir de tensão, significado e mau prenúncio. Não são histórias para divertir, antes convidam ao recolhimento, à introspecção, e por vezes a um saudável susto, cada frase como que a explodir de tensão, significado e mau prenúncio
Para desespero dos editores, neste tempo de volumes de setecentas páginas de muita parra, ele conta as suas histórias com extrema secura e economia, cada frase como que a explodir de tensão, significado e mau prenúncio. Não são histórias para divertir, antes convidam ao recolhimento, à introspecção, e por vezes a um saudável susto, cada frase como que a explodir de tensão, significado e mau prenúncio
Compreendemos que a rua é a casa do contista, os episódios desenrolam-se a partir da relação entre os elementos que a compõem revelando, por vezes em meros pormenores na acção dos personagens, que noutras circunstâncias dissipar-se-iam e passariam despercebidos, a matéria com que se cozinha a humanidade.
Dalton Trevisan não dá entrevistas nem se deixa fotografar desde 1972. É um desconhecido conhecido, anónimo
à sua maneira. Quem o ler seguindo quem verdadeiramente sabe não terá
dificuldade em compreender o porquê de tanto esconderijo. Basta dar com a riqueza das
histórias, dos personagens, das situações que tão bem retratam o viver no seu tanto de estranho, inusitado, aleatório, caótico. Sabemos que a realidade supera a ficção, e Dalton Trevisan parece ser o dono da chave, a esponja que tudo capta. Mas com uma condição: a de ninguém o ver, respeito, ele está a trabalhar, e é um feiticeiro, não quebremos o feitiço. E é um caçador, não pode ser visto pelas presas em seu habitat, lugares onde ele sabe encontrar os espaços com os olhos fechados.... Para os amigos, conhecidos e mesmo desconhecidos, o Dalton anda ou andará por aí, achá-lo é que é complicado mas também não é assim tão difícil... Sempre irá às suas duas
livrarias habituais, ao Mercado (de Curitíba), transitando um pouco por todo o lado da cidade e arredores. Vegetariano plena em forma aos 87 anos de idade, Trévisan é homem lido e tido em literatura mas não só, esponja que é lê os jornais todos, é cinéfilo inveterado. Depois no escrever é absoluto perfeccionista, buscando a palavra certeira como o único dos tiros possíveis, no que é preciso inovar, ser pioneiro, procurando a síntese total, potenciando a palavra ao máximo reduzindo as palavras ao mínimo, e nem uma vírgula a mais. Nunca está perfeito. Nunca. A náusea é tanta que toda a obra é constantemente reeditada enquanto se vão construindo novos edifícios, novas estruturas, contam-se histórias de edições antigas que comprou ao leitor sortudo e desprevenindo oferendo a (boa) nova. Claro que o contemplado não pode imaginar o que o contempla.
* - Recomendo vivamente também os posts do Âncoras e Nefelibatas à volta do escritor e da sua Curitíba, bem como o artigo de Alexandra Lucas Coelho. Ou este documentário adoçante.