sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Reality



"Reality" de Matteo Garrone começa com um plano geral sobre Nápoles e o Vesúvio, a câmara vai depois descendo em lenta panorâmica aérea até chegarmos a um casamento, ou melhor, a um casamento em ponto de festa. Começará  como acaba, em Luciano*, um peixeiro da Nápoles mais antiga: alegre, afectuoso, hiper-extrovertido, misto de chefe de família e animador de serviço - o que mal mal parado pode dar em bobo da corte, como se verá mais tarde. No casamento está Pepe, um vencedor do Big Brother italiano. Sendo isto igual em todo o lado, Pepe dedica-se às aparições em festas, casamentos e "eventos", enquanto rende o peixe, tentando escalar patamares e (ou) evitar o mais possível o esquecimento. Luciano, esse tem talento de sobra, diz a família, dizem amigos, vizinhos, conhecidos. E repetem e insistem tanto que acabam a puxá-lo para um casting em Roma, em plena Cinecittà  - pelos vistos na Itália inventada por Berlusconi os lendários estúdios podem também para servir isso... -  e depois é só esperar. Tudo certo então num mundo em que o que é preciso é acreditar e ter pensamento positivo - a ideia é never give up, como diz o tal Enzo vencedor. Luciano, à sua boa maneira, é o maior, e muito melhor que muito nabo vazio que é eleito para aqueles concursos, está só a um curto passo da fortuna, da fama, do reconhecimento, dos problemas financeiros. O trabalho como peixeiro perde aqui todo o sentido, há que vender a banca do peixe. Entramos, enfim, no âmago de "Reality". Luciano acredita tanto que está prestes a entrar "na casa" que é ele próprio que se torna o reality show, tragicamente mais real que o outro, mas isso é outra conversa. O que é preciso é acreditar, dar aos peritos o que é dos peritos. Ele ainda não foi chamado mas se vão entrar mais duas pessoas no concurso e andarão por aí avaliadores, porque não então aquelas duas senhoras com ar suspeito? É que as senhoras se denunciaram, não paravam de olhar e diziam que andavam à procura de alguém quando esse alguém não se sabe quem é nem nunca foi visto ali. Tinha de haver um propósito: ver in loco a futura estrela, confirmar que ele tem mesmo a tal banca de peixe como o disse nas audições. E se assim é para quê ser desagradável com o imprestável e inútil chato que ali anda sempre a pedir esmola e comida? Não, à cautela melhor mostrar-se a melhor das pessoas. Uma coisa leva à outra, a páginas tantas vai de dar os bens da casa, despojar-se de tudo, ser o benfeitor da comunidade para entrar como um herói no Grande Fratello. E nós que o vemos, constatamos o que todos já sabem: Luciano foi-se, ficou tão alienado que já não é o Luciano perante o mundo, mas o mundo perante Luciano. Perante Luciano, salvo seja, perante uma certa imagem de si próprio, ou melhor, uma certa imagem que quer projectar perante o mundo. Numa realidade em constante auto-projecção, a paranóia torna-se ainda mais efectiva na sua congruência implacável. Não fosse "Reality" uma comédia (dramática) tão bem esgalhada e veríamos com outros contornos aquele grilo que Luciano constatou que nunca tinha estado em sua casa, fazendo a nós e à sua pobre família imaginar que, porque não, poderá também haver ali uma câmara escondida. É aqui que o sonho, doentio (o sonho de entrar num Big Brother é um sonho doentio, não me lixem), invade finalmente e em toda a sua pujança a nossa frágil realidade. E já não há forma possível de se aceitar a realidade da derrota quando se tem toda a certeza da glória eminente. A negação ganha assim modos de sobrevivência. Pode até ser uma loucura temporária, passageira, um atordoamento sem grandes consequências. Uma alienação das sérias, um emparvecimento doentio mas passageiro, quando o “Big Brother” acabar isso passa,  dizem...
A comédia de “Reality” é muito mais que uma comédia, é um valente soco no estômago, mais, é um soco que hoje tem de ser dado. Não, não é o "Grande Fratello", mas sim o grande plano do rosto de Luciano o verdadeiro reality show. Sem tretas, nada de planos abertos, luzinhas de televisão e aparências estudadas ao pormenor, polidas ao extremo, impessoais e inofensivas como peixes num aquário. Matteo Garrone tem a coragem de mostrar sem dó nem piedade que só mesmo pela ausência de olhar e pensamento nos é possível esbanjarmos as horas do dia em frente a um ecrã para (vi)ver uma coisa daquelas. O que vale a Luciano é que todos tentam que regresse à realidade. Começa a trabalhar para uma igreja local. Mas é mais parece recaída de toxicodependente quando em Roma Luciano escapa à missa - não vemos o Papa mas imaginamos que esteja lá - para se escapar para Cinecittà. Não consegue resistir, qual toxicodependente às portas do Casal Ventoso. 
Se depois de finalmente conseguir entrar, e deixar-se filmar naquele enorme aquário simulado, acabou a rir a bandeiras despegadas não ficamos a saber porquê. Se era o riso dos loucos ou um riso de libertação isso já nos escapa. Já sem o dia claro, a bela Nápoles e o Vesúvio, mas antes com a noite e o frieza do betão de uns estúdios onde Fellini, entre outros génios, filmaram no passado grandes clássicos e obras-primas.A panorâmica faz então o movimento inverso. Se antes partimos do geral para o particular, no fim partimos do particular para o geral, bem mais próximos da realidade...  

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* - Na vida real a história é outra, o actor é o recluso Aniello Arena, antigo soldado da Camorra condenado a prisão perpétua. Vale de pouco entrar no lugar comum da surpresa de termos num preso para a vida numa interpretação daquelas. Interessa mais imaginar o outro actor que ele poderia ter sido. Aniello Arena é um actor imenso.

PS: Agora a editar isto descubro que o filme é baseado numa história verídica. Bem que eu escrevi que Luciano é que era a realidade. Mas, vá-lá, a banca do peixe foi readquirida.