domingo, 8 de janeiro de 2012

A Taberna do Espanhuélio

Estávamos em Milfontes, num Agosto algures em meados dos anos 90. Havia na altura uma taberna perto do castelo que servia de poiso para fugir ao maralhal. Tinha a Sagres barata e era muito agradável, genuína e sem gente. Raramente via lá alguém que não o dono, já com os seus setenta e muitos, e a mãe do senhor, que pelas minhas contas só podia andar pelos noventas. 
Taberna alentejana, mas cheia de luz, com um lindo tecto de canas, paredes brancas e duas mesitas, uma de cada lado. Limpa, aprumada, arejada, com nada que se assemelhe à ideia que normalmente se tem de uma taberna, mais ainda da lisboeta, que escura tresanda a vinho e a alcoolismo decrépito. 
Eu sentava-me na mesa da esquerda, como quem entra, pedia uma Sagres, lia o jornal, um livro, ou então não lia nada, saboreava do silêncio que o velhote taberneiro devia andar farto de saborear. Se fosse pelos ares que tinha, não se devia cansar daquilo, mesmo sendo raro entrar lá alguém e quando entrava era mais de passagem, mesmo à noite, que o pessoal queria era acção e a pouca acção que havia era num ou noutro bar dançante e na Barbacã, onde se ouviam guitarras e se via a noite  na foz do Rio Mira, uma das mais esplendorosas vistas que se podem conhecer em vida.
Um desses dias, vindo da praia, trazia com os jornais o livro “Leão, o Africano”, de Amin Maloouf. Foi a primeira vez que do taberneiro não ouvi a conta.
- Permita-te que lhe interrompa a leitura, mas o que é que o senhor está a ler?
Mostrei o livro.
- Há esse! O Amim Maalouf. Conheço, conheço...
- Este é uma história incrível.
- O jovem deve conhecer "As cruzadas vistas pelos árabes"...
- Não. Esse nunca li.
- Pois esse eu li.
- E gostou?
- Gostei. É muito interessante. 
Começou a falar do livro, das cruzadas, dos árabes, de Maomé, de história, de Portugal, da igreja, de políticos, de bandidos, de vigaristas, tudo numa salganhada confusa, repetitiva e incongruente, que na verdade não me posso recordar. Sei que me fazia perder em divagações, porque não ia ler o jornal ou o livro com ele a dirigir-me a palavra, então deixava-o falar à vontade, mais a mais porque seria incapaz de ser mal educado e rude com o senhor. Só desejava que acabasse o monólogo para ir à minha vida, antes que tivesse de arranjar uma desculpa e cavar dali para fora. Mas nem foi preciso. Pelo contrário. Não podia estar a sonhar.
- Estava-lhe a dizer que é o melhor escritor do mundo. Estive a falar com um senhor que sabe destas coisas e ele informou-me: o Amin Malouf é o melhor escritor do mundo!
Quem sou eu para contradizer juízo tão categórico? Como duma outra vez em que o silêncio se interrompeu com a chegada de duas espanholas de calções e indumentária campista. Queriam conhecer, ver gente, tomar o pulso à vila, conversar. Pediram duas cervejas, mas não se foram sentar na mesa da direita, queriam antes ficar de pé, frente-a-frente. Muito directas, as espanholas.
- Qué hay para ver por aquí?
- Vociês son dondiê?
- Venimos de Madrid.
- De Madrid! Muy bonita, Madrid...
- Usted conoce Madrid?
- No. Solo las fiotios, todas muy líndias, muchos monumentios, mucha artie...
- Si. Nos encanta.
- Pues, pues...La artie encanta...
- Señor, se le olvidó a nuestra pregunta...
- Que pergunta?
- Que hay asi de más bonito y interesante para ver aquí...
- Aqui muchas playas, vila muy bonitia... El castielio...El rio...Los barcios fazen travessias para la otra margen, y tanbién fazen passeios en el Rio Miria...
-Y donde se pueden comprar las tarjetas?
- Desculpie, no ouvi bien. Vociê dissie tarjetas?
- Bilhetes  - disse eu de fundo.
- Tarjetas, tarjetas encuentria ali abaixio, suben esta ruia en frientie, despues viran a la esquierdia, descien siempre las esciadas y finalmientie encuentrian la tarjeteiria; mas tarjetas tarjetas solo amanhiana, a partir de las nuevie...
Não podiam deixar de estranhar tão exótico portunhol, porém sentiam-se fascinadas pela simpatia e candura do velho homem. Eu, afim de me aguentar, nem olhava, limitava-me a ouvir, só mesmo a curiosidade, que era tanta, fazia com que seguisse estoicamente a conversa. Também não me queria desmanchar a rir. Sentir-me ia mal com isso.
- Y para comer?
- La comidia del alentejio es muy buenia. Hay buenios restaurantiés aqui.
- Por ejemplo?
- Por ejemplo "La Fatieixia", al frientie del Caiés tiene muy buenio peixie...
- Usted dijo Cais?
- Si, si. Cais...Cais es en português...

Voltei no dia seguinte à noite, com o meu irmão. Quisemos variar a ementa, mas tínhamos poucas hipóteses: whisky não, vodka não, Gin não, vinhaça sim, cerveja sempre, ginginha sim, Martini sim, este fisicamente falando, pois víamos três garrafas numa prateleira por detrás do balcão, três garrafas. Ele teve a ideia. 
- Queres um Martini?
- Vamos ao Martini.
- Então são dois Martinis.
Olhou-nos como se tivesse sido atingido por alguma coisa que ainda hoje não sei precisar qual, via-se nele como que um remorso de inevitabilidade. Tão irreal e fora de tom como incompreensível naquele momento.
- Martini não há.
Olhámos um para o outro e olhámos para as garrafas. Engolindo em seco, perguntámos em uníssono.
- Não há!?
- As garrafas que estão a ver não são para consumo. 
Sentiu necessidade de se explicar.
-As garrafas só estão ali para compor o mostruário, para enfeitar, não as vou estragar compreendam... Então depois como é que fica? Não me levem a mal. 
Embaraçado, estava a ser sincero, desalmadamente sincero. Da nossa parte não queríamos de forma alguma, nem mesmo a brincar, estragar-lhe seu tão estimado mostruário, daí que a bem, e sem qualquer espécie de ressentimento, decidirmos voltar à Sagres, de onde aliás nunca tínhamos saído. Fomos-nos sentar. Bebemos as cervejas, conversámos. Pedimos mais duas, conversámos mais. Quando estamos juntos é raro pararmos de falar. Nem damos com as horas. Daí que não saiba dizer a quantas páginas chegaram ali as espanholitas do dia anterior. Vais ver agora como não te estava a mentir, disse-lhe logo assim ao ouvido.
Pediram dois Martinis. Não, não me peçam para dizer mais nada, não aguentei. Foi sair, disparado, como um míssil, porta fora. Confirmei mais tarde pela boca do meu irmão: "los Martiniés no puedien sierie, no son para consumio, sólo están aqui para enfeitiarie el mostruiário."