quinta-feira, 30 de julho de 2020

RED THREAT IN PORTUGAL





Não se repete este quadro
Três horas, ou nem tanto, entre a Cibeles e o Congresso dos Deputados.
Subida a Plaza de Santa Ana, a das cervejarias, entrei na terceira
Um bocadilllo de tortilla, pimento rojo e una caña
Dois sotaques dos states, o mais velhote, a uma velocidade scorseseana
Viveu em Paris muitos anos, conhecia Madrid Barcelona
E um tanto um pouco de Espanha.
De Lisboa também falou, que em Portugal é admirável, todos falam inglês.
Ao que o outro saltou, desprevenido: Portugal? 
No way, too much left, they're socialists, too much left
Não me recordo se ele também disse too many communists
Mas pensei logo na famosa capa da Time, Agosto de 1975: Red Threat in Portugal
E logo o outro o teve de acalmar, que nada, nada disso, forget it
A Europa não deixa, só que atrás do balcão
Um indesmentível espelho irlandês toma logo o centro da conversa
Excuse me, do you mind if I take a photo? para a filha que tem um bar
Em Nova Iorque, nunca tinha visto a ponte de Saint Patrick assim
Retratada daquela maneira
Muito menos num espelho. 
A pergunta impunha-se, pela voz do mais velho, que tal Madrid
Oh yeah, Madrid’s great!
Tinha chegado ontem e já estava a ver coisas raras. 
Só não percebi bem o resto da conversa. 
Qualquer coisa entre o Aeroporto de Filadélfia e estar quase na hora 
Do Museu do Prado. 

quarta-feira, 29 de julho de 2020

NO PASARÁN


Racismo nas caixas de comentários, cerco a quem se recusa a pensar daquela maneira. Maldade, má criação, péssima ortografia, o número é esmagador, numa proporção 90/10, e estou a ser optimista. Entusiasmados, incessantes, topa-se até mesmo a euforia nuns quantos. Afinal sempre arranjaram um propósito de vida. E funciona. Não é difícil. A grunhice vende.

Mas vão ter luta, sabemos o que fizeram no século passado, conhecemos o processo, como elas se fazem, não é novidade nenhuma. Também não admira que detestem que os chamem pelo que são: racistas.

PETER GREEN (1946-2020)




Peter Green foi um dos grandes. Não se imagina onde teria chegado se não se tivesse quase perdido no caminho, levado pela corrente de uma trip psicadélica, supostamente na Alemanha.

"In the Skies", que adolescente fui descobrir entre centenas de cassetes do meu pai, continua para mim a ser o melhor álbum, o seu esforço a solo mais poderoso e consistente. Não que Peter Green não conseguisse aqui e ali elevar-se mais alto. Preciosidades encontram-se em toda a sua larga e irregular discografia de blues profundos e atmosféricos, desde que fundou os Fleetwood Mac -- que chegarem a chamar-se Peter Green's Fleetwood Mac, só para terem uma ideia.

Uma nota naquela guitarra era capaz de dizer o que muitas não conseguiam em trinta. A vida também se joga muito entre o tempo que dispomos e o tempo em que conseguimos manter a cabeça à tona de água. Em Peter Green essa tensão é flagrante, entre o sonho e o alerta.


terça-feira, 28 de julho de 2020

147.



ESTAS NUVENS


O fogo vem do sul
É incontornável, o que passou
Arde muito mais agora
Reflectindo os espelhos
Enquanto houver nuvens haverá passado
O céu limpo apenas atesta o céu limpo
Ou talvez o deserto
Como amanhã é esta cama onde me deito
Só a ordem do lucro não o acredita
Tornando o dia e a estação facultativos
Ou esse algoritmo fritando os equinócios
Acreditando que pode fabricar outras núvens
Mais lucrativas.

sábado, 25 de julho de 2020

146.




E FICA A OCORRÊNCIA ASSINALADA 


O enredo que não é teu
E sobre o qual foste construído
Vem ter contigo
Subitamente tudo 
É definido
E passas a ver com pormenor
A lanterna sob o fundo
O padrão absoluto
O desligar da consciência 
Emoção do habitualmente
O que afinal era apenas
A linha recta passada 
Quarenta e cinco anos e quarenta e cinco minutos
O tempo exacto entre o ocorrido
E estas linhas onde apenas
Pretendo assinalar a ocorrência.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

145.


Pensava que era diferente
Como se não fosse igual
Ou como se esta forma uniforme
Entre os países
Não respeitasse um padrão
Só que o início é sempre um princípio
Quer se queira quer não queira
Ou não se esteja ruído pelo bicho
Do cinismo

Se o Brasil de todas as plenitudes
Entrasse em cada um destes cantos
Haveria mais espaço
Mais oxigénio menos cidade
Não tentarias dissipar-me por dá cá aquela palha
A mediocridade não invadiria tanto
E esta sombra, constante
Não abriria uma cratera de todo o tamanho
Melhor ainda: não traria
O teu espanto ingénuo
E insondável.


segunda-feira, 20 de julho de 2020

144.




OUTRO BASEBOL


A imensa solidão da partilha
Gente com ideias 
De que não fazes parte
Gerem carreiras
Só escrevem
No devido enquadramento
Sistémico 
Sistemático
Sistema para estar dentro do sistema
O problema é que há sempre aquele jogador
Que dá a tacada tão forte que  a bola sai do próprio estádio, do próprio quarteirão
Da própria cidade
A ideia que consiga sair até do próprio país
Só que é clara a intenção do desperceber alheio
A bola fora, o jogo ganho
A equipa desclassificada. 

ALMANAQUE SEGUNDO




Um pouco definitivo, um definitivo pouco, mas ainda assim um começo.


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Perigos por todos os lados
Vê-se cada vez melhor
Corruptos ao microscópio
Sabem que não têm
Saída
Entre a prisão ou o poder
De nos prender a todos.


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Lendo Raul Brandão livrou-se
Da superficialidade cristalizada
Crosta pegajosa
Costurada
Com o tecido matemático
Das redes.

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Quando pararmos começaremos a resolver os problemas.


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Parar o mais difícil quando o mais difícil é parar.


sábado, 18 de julho de 2020

143.



ASPECTO AO ESCORIAL


Há sempre essa viagem que te joga agora
Tecendo os fios do remoto
É preciso ir visitar os monumentos
E dos monumentos, o monumento
Ao último sopro de um cansaço

Sob a basílica do Escorial
Ouvir a missa, deitado
Penando de gota
Pelos meandros do perdão divino
Preferiria antes ter sido um agricultor, dizia
Séculos depois
Um céptico que por ali passou ficou tão confuso que não sabia
Se viu Deus ou um deus
Entre o diabo
Havia duas salas
Na primeira, todas as dores da época, penas ardidas, toneladas
Comprimidas ao corpo – talvez toda a idade média 
A salvação teria de estar na outra sala, a alegria branca

Aleluia 
Talvez a redenção estivesse
Na pintura no silêncio
Afinal de contas, não vivemos de absoluto alheio
Há sempre um grau de puro exemplo
A porta entreaberta do quarto de Dom Filipe de Espanha
A luz a cerrar séculos sobre si mesma
Um aspecto ao vácuo 
E ao infinito.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

142.


Forço-me a pedalar mesmo com poucas horas de sono. O problema não é tanto o físico, é muito mais o cansaço mental, a concentração sentida como um esforço, e se a consciência se distrai, só posso confiar no instinto, e instinto costuma ensinar coisas.

Quinze quilómetros depois, o Sol na natureza suspensa em meio de uma zona de fábricas, um polígono industrial, como chamam aqui. Domingo, vivalma. E detrás as montanhas,  quinhentos metros para um lado, três quilómetros para o outro, vinte para um outro.

O som da natureza, o espírito da luz que gerou da matéria o próprio espírito, a Terra. A fortuna da mãe Terra. Se reflectirmos um pouco teremos sempre o maravilhoso planeta. Esta comunhão que nos desperta. A natureza cura e insere-nos dentro. Também nos sabe destruir. E se a destruirmos, enfim, será apenas um brevíssimo momento à escala cósmica. Com cinco mil milhões de anos pela frente, segundo o frio cálculo da ciência, falassem ao menos da destruição do homem, era o mínimo, directo, sem vistas curtas. Se tudo acabar só morre a espécie que criou o seu próprio conceito. 

sábado, 4 de julho de 2020

141.



PROGRESSO


1.

Melhor guardares o silêncio
Não te expores às setas alheias
Ignorando a distância
Recorda que assim nunca te deste mal
De outro modo
Partirias em exílio
Depois em queda
E os outros estão sempre implicados
Nos seus próprios termos.

Sê tu antes o teu próprio guarda pretoriano
O samurai sábio implacável que sabe
Evitar o combate
Ou esse mago da biblioteca e todo o quadro
Pleno de amor e universo
Sol a dar luz às raízes
Lua ao sentido
De justiça.


2.

Pensar que aquela abertura queria mesmo dizer abertura
Que aquele respeito queria mesmo dizer respeito

O reflexo do outro
É tão veloz como o pensamento.


140.


O HOMEM


O homem foi criado para governar cidades
Até mesmo dentro de si próprio
Distingue-o a capacidade do pensamento
E assim poder ver-se a si mesmo
(À sua imagem)

Separado do todo
É muito menos do que pensa
E é muito mais um centro
Além do que a (própria) capacidade de imaginação (própria)
Vislumbraria.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

139.


GINÁSIO

Levantar peso
Dar-me um KO a mim próprio
Saber que não vou conseguir
Levantar-me
Ao limite liberto por fim
No corpo a fórmula
Da alegria sem preço.

138.



O NADA COMO PROVA CIENTIFICA


Tudo me leva a crer que a tua massiva adivinha
O que silenciosa tentavas transmitir
De forma enérgica
Não era o meu medo mais ao centro
A quebra massiva das relações
Cortadas a menos de metade.

Perdi qualquer respeito e consideração
Ganhei um viscoso desprezo
E tudo o mais embirro
Afinal é uma torpe encruzilhada
Onde podemos tanto virar à direita como à esquerda
Excepto seguir em frente.

Passou a fazer mais sentido o desencontro
Cortamos a estrada
Afinal era o rumo sem mapa
Ao medo em que és decifrada
Não dá para aderir mais aquelas linhas
Versículos, prosas e poeminhas
Aquele encontrar nada que encontra
A sua força no nada
A correspondência
De nada
Como prova cientifica.

Morre-se e há ali um pináculo
Um cume que não se assume
A tratar da vidinha, a pedir constantemente
Para ser actualizada.


quarta-feira, 1 de julho de 2020

137.


O OUTRO EXÍLIO

Fora da sua religião
Fuga de Lisboa
Promessa da Índia
Chegar a uma posição
A conversão ao islamismo
Ou ver Deus de outra maneira
E desenrolar a trama até ao esquecimento
Primeiro mutilado
Depois exilado
Convertendo uma ilha à respiração
Para não voltar a Lisboa de nenhuma maneira
Três décadas
Não era Napoleão
Suportando o peso de milhões de astros
Inventar um arquétipo
Sem orelhas, sem nariz
Sem o glamour dessa futura cópia de Robinson Crusoe
Sem o saber fui beber à fonte em Praia Lontano
Santa Helena com uma paisagem de Stromboli
Quando a verdade é que o lugar era para náufragos
Inventando um presente, implantando um futuro
Ida e volta a Lisboa só para querer voltar
Não reza a história o registo
Da maior solidão que se possa contar
Com um realismo que se alarga à imaginação
Ou esse templo que só mesmo o herói conhece
E não ficou nada escrito
Reservado ao esquecimento, não era mesmo para ter gente
Nem este Fernão Lopes era cronista
Mas explorador de incomensuráveis
No plano do secreto e insondável
No mais solitário e remoto lugar da Terra
De solidão bem povoado.




136.

Não estamos em tempos de diversão quando é preciso resolver coisas. Não estamos em tempos de diversão, a não ser que resolver coisas seja em si uma diversão. Responsabilidade sim, mas não só, também é preciso propósito, eficácia, dureza, persistência, resistência, resiliência. Sentido comum, mas também flexibilidade, mente aberta, inventividade. Kime, como dizem os japoneses, para referir poder, foco, decisão, capacidade de ir ao ponto, ao fulcro da situação. É óbvio que o poder político está também emerso no mecanismo, muito mais do que alguma vez se viu implicado. Faz parte do processo, toma parte, e quão mais disfuncional é, mais o controlo lhe foge por entre os dedos. Não admira pois que os governos mais discretos e democraticamente rigorosos estejam a fazer bastante melhor -- e isto é uma longa maratona, tenho para mim que esta questão cada vez mais se irá acentuar. Como só os mesmo ingénuos ou de carácter maléfico podem estranhar a hecatombe em países como os Estados Unidos ou o Brasil, onde continuarão a disparatar flagrantemente, mais e mais, cada vez mais, até onde conseguiremos resistir, até onde já quebrámos...