domingo, 2 de setembro de 2018

BIBLOS - Entrevista

          
 


Carla Amado
Responsável do Camões - Centro 
Cultural Português em Vigo


Diz-se que o conto é um dos géneros literários mais difíceis de escrever. O Pedro escreve sobretudo poesia e contos. Porquê?
Por acaso até comecei por outra forma. Escrevi um romance inteiro, ainda não publicado, com o propósito de escrever um conto. A história em si acabou por ir aumentando, por gerar mais e mais enredos e ramificações, tendo-se tornado impossível que se cingisse apenas a um conto. O que é curioso é que acabou por oferecer matéria de histórias para este livro de contos e talvez para o próximo. Também há contos no Praia Lontano que podiam perfeitamente ser trabalhados dentro do romance. Por exemplo AuroraSou Daqui, o próprio Praia Lontano, que dá o nome ao livro, cada um se assumiu como um desafio. Tomo o conto como um desafio, penso-o como uma disciplina com as suas regras estritas, severas, por vezes próximas da arte de relojoaria. Um pouco no sentido de Borges quando dizia que, idealmente, o conto não teve ter uma palavra ou vírgula fora do lugar. Se me puser a pensar nos contos de um Tchekhov, Dalton Trevisan ou Raymond Carver, de facto, posso entender o conto como a mais difícil das formas literárias. E também a que é dado o menor valor e visibilidade, o que é uma grande injustiça. Tenho plena convicção que quem consegue escrever um conto a sério pode escrever um romance, já o contrário parece-me bem mais complicado. 

Em relação à poesia, tendo a, ou tento, escrever mais poesia. A poesia acaba por estar mais presente, seja no mistério das coisas, seja no indizível, no indecifrável, no que não é possível comunicar de outra maneira, no que se revela não revelando, ou vice-versa, é um forte meio de catarse, purifica. Já o conto ou o romance é mais terra-a-terra, não vive na água, é mais físico, o próprio ato de escrita é mais físico, esgotante, precisa de energia, de potência. Norman Mailer dizia que todo o escritor é um atleta, compreendo-o perfeitamente. Mesmo não me considerando um atleta, considero-me mais contista que poeta, penso mais como escritor. Sou definitivamente melhor contista que poeta, se as coisas se podem pôr dessa maneira. 
    
O conto que dá título ao seu mais recente livro intitula-se “Praia Lontano”. Onde fica Praia Lontano? Que lugar é este na sua imaginação?
- Fica tão longe quanto a palavra nos levar. Geograficamente estará ali para os lados da ilha de Santa Helena, não podendo estar em pleno Mediterrâneo... Mas situo-a em muitos lugares. De Stromboli à Atlântida, o que sabemos é que é um lugar tão longínquo como escondido, que estamos no lugar do vulcão, perante a catástrofe eminente. Lontano é lugar de exílio, para o exílio, sobretudo para se viver tranquilamente exilado. Será uma ilha esconderijo onde as pessoas ter-se-ão alheado do próprio crime. Onde tudo o que desejam é que as deixem em paz. Como se diz em Espanha, «no quieren tratos con nadié». Mas não são propriamente parasitas, vão subsistindo da maneira que podem e sabem. Decidiram foi abandonar o barco, certo mundo tirânico do trabalho. 

Num sentido mais mundano talvez haja ali reminiscências dos Açores, quanto mais não seja na percepção da insularidade. Há muitos anos atrás andei pelas ilhas trabalhando para um operador turístico e tomei consciência e sentido dessa realidade. Tive recentemente o feedback de um leitor que me disse que teve uma vaga noção de ter regressado às ilhas. Ora ele viveu e trabalhou nos Açores muitos anos. Fiquei muito contente, qualquer coisa como ter recebido uma medalha.

A Galiza, Vigo, também aparece nesse conto. O que o liga à Galiza e a Vigo, mais concretamente?
Galiza é a nação onde vivo - num país de nações, onde me sinto em casa, onde me sinto identificado desde a primeira vez que entrei por aqui adentro pela província de Lugo em finais dos anos 90. Logo ali fiquei siderado com as semelhanças com Portugal, não no sentido de ser parecido mas de ser mesmo Portugal. Depois os galegos são um povo magnifico, acolhedor, autêntico, sinto-me muito bem aqui, sou muito bem tratado. Dou-me maravilhosamente com estas gentes. A Galiza pode não ser um país independente mas é definitivamente uma nação. Está na raiz de Portugal, toma parte dessa fascinante variedade de nações que é a maravilhosa Espanha, está impregnada pela nação Celta até às entranhas, basta ouvir a sua música. Também adoro a comida, as feiras e as festas, os pueblos, a própria literatura que vou conhecendo e que me entra muito bem pois a estrutura da língua é similar. 

Já o personagem de Vigo surgiu durante a escrita do conto. Não foi nada premeditado. É absolutamente extraordinário ter lançado o livro em Vigo, depois de o ter lançado em Lisboa. Fosse planificado não teria um centésimo da graça. E o personagem ser galego. Nada ter sido premeditado tem tanto de transcendente como de misterioso. E fazer todo o sentido.

- Lisboa é o centro da grande maioria dos contos deste livro. O Pedro é de Lisboa, mas vive agora na Galiza. O que significa Lisboa para si, literariamente e pessoalmente falando?
Há um filme de Jorge Silva Melo -  António, um Rapaz de Lisboa - com que senti uma imediata identificação. Um dia li uma entrevista, creio que do Pedro Mexia, em que ele assim se identificava, e nos identificamos tantos, tanto!

Entre tantos eus que posso ser ou encarnar começo e acabo sempre sendo o rapaz de Lisboa. Rapaz de Lisboa e pronto, ponto. Lisboa é a minha cidade, a minha pele, aquelas são as minhas ruas. Lisboa é a única cidade do mundo onde poderia andar de olhos fechados que não me perderia. Sinto em mim impregnadas as suas formas, as geometrias, a luz. Posso deixar de viver em Lisboa, Lisboa é que não deixa de viver em mim. Por outro lado há essa tal coisa, a tal, enfim, essa ironia tão portuguesa: sou muito mais Lisboa agora do que quando lá estava, Lisboa está muito mais em mim agora. Acho que até a própria Lisboa gosta mais de mim agora. E eu de Lisboa. Daí que me irrite tanto com os turistas quando lá vou, é como se me roubassem a cidade. Também me irrito se não me largam da mão, ou se me puxam demasiado para combinar coisas, como se me patrulhassem o tempo, é como se não me deixassem estar com Lisboa, sinto assim a coisa, esteja certo ou esteja errado. Se já me aconteceu umas duas ou três vezes ter vontade de pegar no carro às duas ou três da manhã e meter-me na autoestrada só para ver Lisboa amanhecer... E depois voltar para a minha Galiza para dormir a sesta. 

Nos seus contos perpassam também outros autores e referências a outros escritores, assim como, nalguns casos, faz mesmo reflexões grandes sobre a escrita. O que mais influenciou a sua escrita? Em que autores poderia dizer que se deixa inspirar?
Para poder-se escrever, ou para poder escrever-se a partir de uma certa fasquia ou nível que valha a pena, penso que além do sumo do talento é preciso ter vivido ou lido bastante, saber algumas coisas que os outros não sabem, ou filtrá-las de uma maneira que o outro não faça ideia, que o desconcerte, que o surpreenda, convém ser absolutamente original, não a cópia de alguma coisa. O que só se ganha quando nos ganhamos a nós próprios, o que tem tanto de autoconhecimento como da capacidade de apanharmos a nossa própria expressão, esse chegar a ser o que se é, de que falava Nietzsche, que não mais é o feito de alcançarmos a nossa própria Voz com V grande. Para isso é necessário ganhar mão, o que só se consegue com muito treino, muita prática. Nisto uns são mais precoces que outros, outros têm mais sorte, outros têm a obrigatória e espinhosa missão de descobrir o que têm soterrados dentro se si próprios... As minhas influências são dispares. Vão de Jorge Luís Borges a José Cardoso Pires, de Charles Bukowski a Agustina Bessa-Luís, de Alexandre O´Neill a Machado de Assis, de Nuno Moura a Sherwood Anderson, de George V. Higgins a Fernando Pessoa, Saul Bellow, Dostoievski, Jorge de Sena...



       


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