A verdade é que eu tenho uma coluna desgraçada. E doem-me
os joelhos, os ossos, as articulações. Sempre foram vinte anos em
Vigo, a trabalhar num estaleiro naval. Isto dos 18 aos 38 anos.Vinte
anos também é o tempo que cá estou e um sujeito acostuma-se.
Pesca-se, planta-se, faço uns biscates de vez em quando. É que eu
aqui sou válido, posso ser muito útil, manejo bem os metais, faço
um excelente bate-chapa, arranjo carros, motos, bicicletas; torneiras
e canalizações; estores, candeeiros... Também não o digo a quase
ninguém, lá se ia o meu precioso sossego.
Quando é possível também ganho algum aqui na casa. Tenho
lá fora uma casita com dois quartos que alugo a escritores e eremitas.
Isto quando alugo, já tive de mandar gente embora porque não
os queria cá. Escritores e eremitas ao menos não fazem barulho,
a não ser os primeiros com a máquina de escrever – se tiverem coragem de a trazer acima – o que não me apoquenta por aí além,
até nos damos lindamente. Problemas são mesmo os estudantes,
esses jurei para nunca mais. Da última, quer dizer, da primeira e
única vez, eram uns estudantes escoceses e foi uma desgraça. Não
dormi nada durante três dias e só não os mandei embora porque
tive medo deles. Nunca mais. Mas feito o balanço de tudo o que
sei e tudo o que vivi, sei que fiz bem em vir para aqui. Naquela
fábrica eu ou dava em maluco ou ia parar a uma cadeira de rodas.
Aqui ao menos vejo o mar, não corro o risco de passar fome,
pelo menos enquanto um vulcão não me levar, se me levar, isto
porque a terra lá abaixo é que decide, agora ou daqui a cem anos,
também dizem que a ilha se pode afundar, enfim, dizer dizem
muita coisa. Mas deixem que vos fale do meu cão, chama-se
Vento. Vento porque o vi nascer num dia de grande ventania. O
Vento é o meu melhor amigo de todos os tempos, sem dúvida
alguma. Veio comigo de Vila Lontano, quando me fartei daquela
gente.
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