quarta-feira, 4 de julho de 2018





A verdade é que eu tenho uma coluna desgraçada. E doem-me os joelhos, os ossos, as articulações. Sempre foram vinte anos em Vigo, a trabalhar num estaleiro naval. Isto dos 18 aos 38 anos.Vinte anos também é o tempo que cá estou e um sujeito acostuma-se. Pesca-se, planta-se, faço uns biscates de vez em quando. É que eu aqui sou válido, posso ser muito útil, manejo bem os metais, faço um excelente bate-chapa, arranjo carros, motos, bicicletas; torneiras e canalizações; estores, candeeiros... Também não o digo a quase ninguém, lá se ia o meu precioso sossego. Quando é possível também ganho algum aqui na casa. Tenho lá fora uma casita com dois quartos que alugo a escritores e eremitas. Isto quando alugo, já tive de mandar gente embora porque não os queria cá. Escritores e eremitas ao menos não fazem barulho, a não ser os primeiros com a máquina de escrever – se tiverem coragem de a trazer acima – o que não me apoquenta por aí além, até nos damos lindamente. Problemas são mesmo os estudantes, esses jurei para nunca mais. Da última, quer dizer, da primeira e única vez, eram uns estudantes escoceses e foi uma desgraça. Não dormi nada durante três dias e só não os mandei embora porque tive medo deles. Nunca mais. Mas feito o balanço de tudo o que sei e tudo o que vivi, sei que fiz bem em vir para aqui. Naquela fábrica eu ou dava em maluco ou ia parar a uma cadeira de rodas. Aqui ao menos vejo o mar, não corro o risco de passar fome, pelo menos enquanto um vulcão não me levar, se me levar, isto porque a terra lá abaixo é que decide, agora ou daqui a cem anos, também dizem que a ilha se pode afundar, enfim, dizer dizem muita coisa. Mas deixem que vos fale do meu cão, chama-se Vento. Vento porque o vi nascer num dia de grande ventania. O Vento é o meu melhor amigo de todos os tempos, sem dúvida alguma. Veio comigo de Vila Lontano, quando me fartei daquela gente.


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