quinta-feira, 2 de novembro de 2017

93.


POR UMA VARANDA DESTE HEMISFÉRIO VEJO O PRINCÍPIO DE TODAS AS ESTRADAS


A folha é um oráculo, escrever é consultar o oráculo. O oráculo pode ser a água que nos transporta até ao cume da montanha. A escrita leva-nos, leva-nos sempre, nem que maremotos. A escrita é a passagem (pelo) impossível para o outro lado, impossível pelo impossível arrastado. Só mesmo a escrita nos pode navegar do seco deserto ao cume da montanha. Só mesmo a escrita subverte as leis da gravidade. A gravidade congrega, a água navega, a escrita congrega-navega. O leitor é a prova à prova dessa realidade a constante: o leitor navega-congrega.

A folha é a matemática, escrever a equação de um buraco negro antes estrela de neutrões onde começámos esmagados como Raskólnikov de encontro a uma parede. Tudo a posteriori. A posteriori do que não sabemos. A priori temos um barco, a folha, temos o deserto, areia, temos água, temos montanha. Temos mundo avessos, contrários. Escreveremos a longínqua matéria negra; nenhures a anti-matéria… Escreveremos tudo o que sabemos (do) que (não) sabemos. Do céu estrelado, milhões de estradas, estradas até lendas, a rumar ao remoto - e em cada estrada um milhão de estradas, e em cada estrada de um milhão de estradas outro milhão de estradas - o infinito em contra nada, a anti-luz emaranhada. 

Toda a jornada acabará no terminal de chegada o terminal de partida. Dali só dali se iniciaram todas as viagens, é para lá que se dirige toda a viagem. No princípio de todas as estradas o fim de todas as estradas. O início o fim das estrelas a luz toda a luz de onde se vê o caminho para as estradas - não fossem as estrelas as próprias estradas.

Somos nós próprios a iluminamos a própria Via, Láctea folha. A quem dirá que o tempo não se existe responderemos que o tempo desta mão não é o mesmo dos olhos que a vêm. Diremos tudo é estrada, tudo é estrada, tudo é estrada. Que só o presente condensa. Que só o presente aqui-agora é o arquitecto de todos os tempos. Que só o presente acha todo o tempo ao mesmo tempo. Que só o presente dispara memórias a todos os tempos a todos os espaços. De olhos fechados podemos nada saber das pedras da primeira estrada. Mas pela escrita escreveremos presente a todas as estradas, a todos os terminais. Escreveremos as mais importantes lições das bifurcações, das escapatórias, das divisórias de segurança... Diremos que das entre-estrelas o alfabeto consuma e congrega-navega. Daí convido eu agora o leitor a vir comigo um instante ali à varanda desta sala onde escrevo. Vê-se bem Sírius a oito anos luz. A escrever bem podemos conceber ali umas férias.