sexta-feira, 14 de agosto de 2015

34.1


Certa noite estava lá eu metido no estúdio e vi dos bastidores essa ideia romântica que já pouco se sente nos dias de hoje. A de rádio nocturna, de noite, de rádio, transmitida do estúdio pelas ondas aéreas do céu nocturno até às casas da cidade, de um país ou de um continente inteiro. Tom Waits... Leonard Cohen... Holy Cole... Billie Holyday... Dois apitos para as duas da manhã. Pink Floyd? Pink Floyd... Dire Straits... mais tarde Né Ladeiras... Louis Armstrong, era o que era, lá na sua coerência ou incoerência o locutor prosseguiria mas sempre nos limites do gosto, amanhã seria outra coisa, a voz, a voz não sei se bebia pouco, se bebia muito, se bebia de todo, trazia-a levemente decorada a whisky puxando a sela o cowboy solitário. Encorpada, terna, cheia de personalidade na sua conta, peso e medida, apenas o certo tom certo pronto para o afagar sem dar nas vistas, mas nunca mesmo nunca deixando de tentar inebriar o outro, esse ouvinte desconhecido da noite. Auxiliando a insónia, mantendo alerta o automóvel de qualquer longínqua estrada ou auto-estrada vinda de Viana do Castelo ou tanto faz numa esquina em Oeiras. Partilha de solidão, não solidão de partilha. Pode ser só o som de uma voz, ou apenas música som sobre a noite na Terra, dispensa o par, suspende-nos no ar, define-se bem a onda hertziana. A mim chegou da infância a ouvir rádio pela noite nas viagens de carro com o meu pai, ou já mais para a frente numa tenda de campismo acima da caruma dos pinheiros, de mansinho ouvindo do leitor gravador Sanyo sentindo a textura do saco-cama. O que não dá com rádio que não presta [deixem os maus rádios fora disso], rádio que não presta não é rádio, não fixa, nem o momento quanto mais a memória, nem uma memória que seja, nada, fixa nada... O problema da rádio, o grande problema da rádio, é mesmo só mesmo o esquecer-se de si própria. É o que acontece de dia, cada vez mais, em quase todo o lado, até ao dia em que todas as memórias de todas as memórias de rádio apenas se fixem na memória de um dia ter havido no planeta tal singularidade transmitida em tais singulares aparelhos... Agora de noite, de noite é mais difícil, a noite ainda é a última barreira, a guarda pretoriana, de noite a rádio ainda encontra o seu último refúgio, o porto de abrigo das tempestades, a estalagem perdida na Antártida, a abrigada hospedada zona de recolha e silêncio onde uma voz no ar ainda nos pode servir de farol no oceano da noite.