sábado, 25 de julho de 2015




Sublinhado de sublinhados que transcritos ainda acabavam com este blogue:

 - Acontece que com o jazz saio sempre a descoberto, livro-me da carapaça do idêntico para ganhar esponjosidade e simultaneidade porosa. 

 - Macedónio Fernandez:«Recuso-me a assistir ao final dos meus escritos, e é por isso que os termino antes.»

- Tal como tratarmos a linguagem e a escrita assim seremos nós tratados por elas.

- Não é preciso acreditar demasiado na praxis para pressupor que um exercício atento da literatura devia levar a um progresso simultâneo da forma de conduzir o automóvel e no sentido da viagem para a qual nos dirigimos. Como é possível não ver que a única situação do escritor autêntico é o centro do átomo literário, onde partículas conhecidas e outras por conhecer se resolvem na perfeita intencionalidade da obra: a de extremar tudo o que a suscita, a faz e a comunica?(...)
O mal é que se não há ouvido, como dizia Unamuno, se não há ritmo verbal que corresponda a uma economia intelectual e estética, se não há esse sentido infalível do vocabulário, das estruturas sintácticas, dos acatamentos e transgressões que fazem o estilo de um grande escritor, se novelista e leitor são dois cúmplices enfiados na mesma cela a comer o mesmo pão seco, nesse caso qués'sad'fazer, caro amigo, estamos feitos.

- A «mensagem» tão disposta a prescindir alegremente de um estilo também não há-de ser grande coisa. 

- Sofremos na literatura como em muitas outras coisas as desvantagens das nossas vantagens: inteligentes, adaptáveis, rápidos a captar o rumo das circunstâncias, damo-nos ao triste luxo de não acatar a distância elementar que vai do jornalismo à literatura, do amadorismo à profissão, da vocação à obra. Porque é que os nossos homens de ciência valem estatisticamente mais que os nossos literatos? A ciência e a tecnologia não admitem a improvisação, a preguiça e a facilidade na medida em que os nossos literatos crêem inocentemente que a narrativa lhes permite, e tiram por outro lado partido das nossas melhores qualidades.(...) Viva eu é um ímpeto que me fartei de ler e de escrever nos paredões da minha infância, quase sempre acompanhado desse outro ímpeto que também nos desenha: Maldito eu. É assim que nos decretamos um dia escritores ou leitores ex officio, sem noivado e sem vigília de armas.(...) Era e continua a ser divertido comprovar como estes tipos pensam que  basta ser vivo de espírito, inteligente e ler muitíssimo para que o resto seja questão de baskerville e corpo oito.(...) É pena que por esta altura se insinue outra vez tristemente a falta de vontade de ir à luta, a ingenuidade ou a canalhice de querer arrecadar o prémio sem se ter dado um golpe que fosse. 

- Todo o escritor europeu é «escravo do seu baptismo», se é pertinente citar Rimbaud; quer o queira ou não, a sua decisão de escrever comporta arcar com uma imensa e quase pavorosa tradição; quer a aceite, quer lute contra ela, essa tradição habita-o, é um familiar seu ou o seu incubo.(...) Uma suspeita de culpa e de superfluidade leva o intelectual europeu à mais extrema vigilância do seu ofício e dos seus meios, única forma de não refazer caminhos demasiado percorridos. Daí o entusiasmo que produzem as novidades, o assalto em massa à nova rabanada do invisível que alguém consegui corporizar num livro. 

- O tempo de um escritor: diacronia que basta por sim mesma para desajustar qualquer submissão ao tempo da cidade. Tempo de mais adentro ou de mais abaixo: encontros no passado, encontros no futuro com o presente, sondas verbais que penetram simultaneamente o antes e o agora e os anulam.

- Sabemos que só a partir do fundo de um poço se conseguem ver as estrelas em pleno dia. Poço e céu não querem dizer grande coisa, mas é preciso comunicar-se, traçarem-se as abcissas e as ordenadas; Jung oferece a sua nomenclatura, qualquer poeta a sua, a antropologia sabe de regimes nocturnos e diurnos da psique e da imaginação. Pela minha parte, estou seguro de que assim que as circunstâncias exteriores (uma música, um amor, um estranhamento qualquer) me isolam por um momento da consciência vigilante, aquilo que aflora e assume uma forma acarreta consigo a certeza total, um sentimento de verdade exaltante. Suponho que os românticos reservaram para isso o nome de inspiração, e que não era outra coisa senão a mania.

- Se não se pode dizer, há que tentar inventar-lhe a sua palavra, uma vez que é pela insistência que se vai definindo a forma e a partir dos buracos que se vai tecendo a rede.

- O que é que a tua admiração interessava a van Gogh? O que ele queria era a tua cumplicidade, que tentasses olhar como ele olhava, com uns olhos desolados por um fogo heraclito. Quando Saint-Èxupèry sentia que amar não era olhar nos olhos um do outro mas duas pessoas a olharem juntas na mesma direcção, ia mais além do amor do casal, porque todo o amor vai mais além do amor do casal se for amor, e eu cuspo na cara de quem me vier dizer que ama Miguel Ângelo ou E. E. Cummings sem me provar que, ao menos uma vez numa hora extrema foi esse amor, foi também o outro, olhou com ele a partir do seu olhar e aprendeu como ele para a abertura infinita que espera e reclama.


Júlio Cortázar, em A Volta ao Dia em 80 Mundos, Tradução de Alberto Simões, Cavalo de Ferro