quinta-feira, 11 de junho de 2015

Fados

Tiraram-lhe há pouco a última perna. Mas não vai de cadeira de rodas, não, usa próteses, muletas, depois levam-no e canta, canta que canta. 
Sessenta anos, sabe o que são sessenta anos de fado? Uma lenda, tanta história... Toda a gente quer ouvir-lhe o fado. Se passa nas casas então querem todos. Ele só pergunta: «o senhor paga-me o jantar? Se não paga, não canto». Ou alguém paga ou alguém vai ter de pagar, é justo. Comigo é diferente. Eu tenho uma maneira de o levar na certa que é começar a cantar-lhe os fados. Aí tem de entrar, não falha. Então se o fado é dele... De uma maneira ou de outra ele canta, canta que é uma maravilha o fado. Canta melhor que ninguém. Também ninguém canta assim, sabe, à antiga? Não todo o fado, mas o seu fado, compreende? São os fados que canta, tem de gostar dos seus fados, de outra maneira não entram, não entram e então ele não entra no fado, não canta. Eu entendo isso, para mim não há nada pior que o fado mal interpretado. O fado quando não se sente não se canta. Se não se tem não se canta. Não sai de dentro é uma coisa horrível, falsa, artificial, reproduzida, horrível, nem sei explicar... Já ouviu o Fado Cravo, do Marceneiro? Então meta ali um desses maus cantores de hotel. E não é só no fado que é assim. Em qualquer música, olhe, a ópera. Os blues, claro. Tem de ser cantado como deve ser tocado. Está a ver a palavra tocado? Olhe para a palavra tocado. Tem de ser tocado mas também tem de ser tocado, entende? O português é uma língua extraordinária. Tocado e cantado, é a língua do fado.