quinta-feira, 23 de abril de 2015

Há de haver um instante

A realidade é outra e demasiado profunda a sua tragédia para a podermos redimir. Os bárbaros justificaram-se com o cristianismo aproveitado à pressa mas que preencheu dois mil anos. Os bárbaros de hoje não têm um sucedâneo desse cristianismo para o aproveitarem. A grande dignidade do homem foi toda a sua criação em torno de um mito e da força que vinha nele. Mas nenhum grande mito hoje pode ser mais forte do que a nossa consciência, nenhum mito assim a pode subjugar. Assim talvez o homem viveu até hoje pelo que pôde saber e viverá amanhã pelo que puder esquecer. O homem viveu até hoje pelo que acumulou de dignidade – e viverá amanhã pelo que acumular de desumanização. No limite disso, porém, no limite do autómato gregário, há-se haver um instante em que ao menos por descuido ele se interrogará sobre o seu destino. E tudo então recomeçará.

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente III, Livraria Bertrand, 1983, p. 100-101