quinta-feira, 30 de abril de 2015




I was last in Rome in AD 540 when it was full of Goths and their heavy horses. It has changed a great deal since then.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Baudelaire

Dizem que os mestres se combatem, pelo menos a determinada altura. Li Charles Baudelaire demasiado cedo - será? - à luz do que eram os meus dezoito anos. Tomei-o demasiado à letra. Usei suas palavras como armadura e condenação, como libertação e como poço sem fundo, como evasão e como beco sem saída. A realidade comprovava seu magistério, pior é que comprovando era uma forma de o capturar. Era o tempo de levar tudo à frente, o que não fosse inteiro (como Nietzsche, Rimbaud, O Medo de Al Berto) era parcial inteiro - todo o Miller dos Trópicos, o Kerouac do Dharma Bums ou do On The Road, todo o Pessoa que havia menos o Ricardo Reis, vá-se lá saber porquê, o Céline da Viagem ao Fim da Noite, mas nunca o da Morte a Crédito (esse nem hoje). Só mais tarde é que comecei, vá-lá, a temperar as gastronomias. Sobretudo a deixar para trás esse "mestre do spleen", esse certo romantismo Exilado por suas "asas de gigante". Eram becos sem saída, achava eu, e o punk rock sempre foi bom para dar murros na vida maldita, só que anteontem, ao acaso, também já não era sem tempo, abri, por palpite, a página 153 das Flores do Mal e dei com O Irreparável

Podemos sufocar o antigo Remorso, 
Que vive e se torce, agitado
E se nutre de nós como os vermes dos mortos
Ou as lagartas dos carvalhos?
Podemos sufocar o implacável Remorso?

No se preocupe, no se preocupe, se é para tomar à letra, dêem-me apenas o manejo da Forma, o absoluto controlo de todos os recursos, essa capacidade de domar o monstro de olhos vendados. O que é apenas um princípio, pois a solidez de uma rocha apenas se pode comprovar quando já nada é o que era. Ou como estava. 

PS: a quem interesse.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Álbum de Fotos

1 - Imagem da minha imagem, mas não era eu quem lá estava...
2 - Subitamente vejo os outros. A distância. Dos outros, daquele sabor a ambiente, de eu pelo fundo da noite... 
3 - Misto de familiaridade, estranheza e nostalgia. A tristeza da falta vai da ausência à futura ausência. Fade out de agora até daqui a vinte anos. Carinho por aquele momento que depois de tudo fica, mesmo que naquela altura só me sentisse cansado.
Já me ia esquecendo, pouco interessa, tarda nada colaremos isto agora a outro passado que para aí anda. Em álbuns de letras, álbuns de fotos, futuras notas de rodapé...
4 - Era apenas conversa de circunstância...
5 - Vias as fotos e não imaginavas as vozes, os falares, a geometria afectiva. Ainda hoje sei distinguir um a um, senão os sons todos, pelo menos as falas. Sotaques que para alguns serão séculos passados.

É Mentira...

É mentira, era um homem, o cantor era o Zé Cabra
Os actores tinham sido substituídos
Por uma câmara combustível gasolina Super 8

Bebida de um conto Bukowski adentro de Um Homem que era 
Um lavador de pratos mas acima de tudo era Um Homem que dizia 
Que era um homem de verdade.

Charles Bukowski talvez mandasse bugiar o 
Zé Cabra
Quando este, num silêncio pós-Mahler, se pôs a cantar acima do personagem
George, o lavador de pratos, que cantava seu opus de verdade
Charles Bukowski nem sequer estaria a pensar nalguma daquelas assistentes
Quando o Zé Cabra ainda pensou levá-las para o hotel
Enfim, deu por si a insistir sabe-se lá bem como e levou tampa
À discussão Bukowski até fez bem em interceder
Que ao menos ouvissem Tom Waits
Que o  filme pois então lá ganharia um prémio 
Perdido num ano sem recordações
Tudo tão mal sintonizado que também daqui ainda não sabemos
Se era Primavera, se Outono, se estava quente, se era frio
Se ali chovia era em mono que Zé Cabra desafinava
E cantava «É MentiraÉ Mentira...», e o George, de raiva, salivava
Não queria ser o copinho de leite que ela tinha deixado
E que era um homem de verdade e também sabia cantar
Haviam de ouvir a sua voz...
Bukowski, enfim, lá teve outra vez de interceder
Pois a cada Zé Cabra, o seu Zé Cabra...

sábado, 25 de abril de 2015

27.

Quando partes não te podes partir. Acontecer não é não acontecer. Não pensas acontecimento, vives acontecimento. Pensar deves pensar depois, muito, mas se pensas antes ficas partido, repartido, fragmentado, indeciso, matutando como a centopeia do provérbio chinês. Sem unidade, sem fluente corrente, não és sequer âncora.

Operação Outono



A síntese influência cinéfila versus história/acontecimento parece funcionar na perfeição em "Operação Outono", de Bruno de Almeida, criando uma obra de fôlego e importância. Presenças certas que mesmo indefinidas se sentem. Está lá John Cassavetes, o que é tudo menos óbvio - mas sondem bem as interpretações. Mais vincado, claro, um certo Martin Scorsese, o vintage, na vertigem e no ritmo. Ou esse Sidney Lumet mais político e justiceiro, que sendo de Filadélfia tem Nova Iorque numa costela, como também é incontornável dizer que o português lisboeta nascido em Paris Bruno de Almeida também a tem, não tivesse também ele feito de Manhattan a sua casa durante uns bons vinte anos. Sim, há uma partilha dessa marca, uma génese que se sente continuar e está na filmografia do realizador, mesmo que aqui o assunto se prenda à figura da PIDE e de Humberto Delgado. O que só abre boas linhas de leitura ao filme, de um rigor e realismo levados ao extremo, por vezes trabalhado quase ao nível da fotocópia. Mas voltando aos temperos, a gastronomia recomenda-se. "Operação Outono" é interessante, honesto e desafiador. Neste caso mistura-se ao cinema o serviço público (e cívico), não roubando, porém, de um lado para dar a outro como acontece em tanto filme-denuncia e como é regra recorrente nos biópicos desta vida que despontam amiúde em mero interesse ilustrativo.
"Operação Outono" tudo vale porque é provado e comprovado em factos reais. E tudo interessa por saber com isso prestar disso o devido tributo cinematográfico. A começar na direcção de actores e superlativos desempenhos. Nalguns casos de distinção máxima, como um Carlos Santos em absoluto estado de graça como Rosa Casaco. Ou Diogo Dória num autêntico canto do bandido (facho) da espécie mais repelente que este país alguma vez criou. Pena o "soprano" John Ventimiglia estar ali tão mal dobrado, o que não invalida a interpretação competente. Ana Padrão excelente, para não variar. Nuno Lopes idem, desta vez nas vezes do bufo encoberto camuflado de comuna. No que resta podia estar aqui a enumerar mais alguns, um a um, ia quase todo o elenco, onde mesmo no mutismo de Cleia Almeida se sente força e presença. Mesmo assim é preciso não deixar de nomear um não-actor que muito brilha em seu pequeno papel. Falo de Camané, um achado como António Semedo, o guarda fronteiriço, que acaso ou não do destino seria sósia do fadista, e como sósia de Camané tornou-o assim actor a auto-recriar o sósia. 
Continuemos pela forma, a começar pela banda sonora dos Dead Combo que marca a toada trágico-tensa do filme, vivendo o som entre um tom Ennio Morriconiano e um certo minimalismo de uma musicalidade bem tuga e datada. 
Depois, a unidade de ritmo e montagem que distribui e redistribui com eficácia os dois tempos do filme – o antes e depois do assassinato de Humberto Delgado – não deixando de dar espaço e respiração à unidade da cena. Feita de muito jogo de cinema, força e eficácia no(s) diálogo(s) sem mácula, não deixando de escapar aqui ali um certo sentido de humor de mórbido que não deixa de nos causar um certo arrepio na espinha. Há nisso, felizmente, vá-lá, um certo tom lúdico diria scorsesiano cuidadosamente dentro de certos bem desenhados limites, até porque a tensão (do) real e o tom claustrofóbico da obra não dão - como a própria PIDE não dava - margem a grandes contemplações - muito menos a grandes diversões. Daí ao mesmo tempo também resulta e bem essa certa graça-sem-graça típica de todas as gentes e ambientes do bafio da época, coisas do humano bolor, que da nossa parte foi essa terrível dose de quase cinquenta anos de ditadura salazarista. Tão bem vindo o alívio da cena do 25 de Abril na sede da PIDE, onde e quando o ambiente claustrofóbico dos corredores dá lugar às janelas abertas e ao ar puro e à maravilha da luz do sol para matar os ácaros. 

quinta-feira, 23 de abril de 2015

26.

Tudo demasiado confuso e em cacos, nasce uma vida, tudo recomeça de novo entre os cacos. Deram-te um papel, dizem que o tinhas esquecido, tu próprio não sabias dele, desse papel que não tinha nada escrito, era a folha em branco, e por defeito, era mesmo o papel que desempenhavas. Papel esse que cada um tem, o seu. É a vida. És tu sempre a acreditar na maneira certa. Mania que um ideal é o ideal. Não há como desmentir, a utopia é o princípio da respiração que nunca alcança. Mas avança, como já foi dito e escrito. Escapa a palavra, a utopia não depende das palavras. Tem a beleza dos moinhos de vento.

Há de haver um instante

A realidade é outra e demasiado profunda a sua tragédia para a podermos redimir. Os bárbaros justificaram-se com o cristianismo aproveitado à pressa mas que preencheu dois mil anos. Os bárbaros de hoje não têm um sucedâneo desse cristianismo para o aproveitarem. A grande dignidade do homem foi toda a sua criação em torno de um mito e da força que vinha nele. Mas nenhum grande mito hoje pode ser mais forte do que a nossa consciência, nenhum mito assim a pode subjugar. Assim talvez o homem viveu até hoje pelo que pôde saber e viverá amanhã pelo que puder esquecer. O homem viveu até hoje pelo que acumulou de dignidade – e viverá amanhã pelo que acumular de desumanização. No limite disso, porém, no limite do autómato gregário, há-se haver um instante em que ao menos por descuido ele se interrogará sobre o seu destino. E tudo então recomeçará.

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente III, Livraria Bertrand, 1983, p. 100-101

terça-feira, 21 de abril de 2015

Trunques

- Distintos pontos de vista aumentam-nos o contraste, a gama das cores. Pintamos melhor compreendendo a(s) forma(s), os contornos.

- Se a escrita tem sumo dissemina-se para fora e para dentro ao mesmo tempo. As vitaminas são essenciais ao organismo.

- Eliminas o supérfluo e as palavras mexem-se, a frase é outra, tem de fazer pela vida.

Napalm sobre a afectação.

Kime.

Honestidade à prova do fogo.

Editar é um grande pára-quedas.

- Saber dar com as junções. Podem ser de outro puzzle que para aí anda...

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Poeiras

- Continua gélida, mas em pior, não sei explicar... Vê como é - disse o outro - imagina vinte anos a apodrecer no frigorífico. Não ia cheirar lá muito bem.  

Sabe de menos e quer fazer jogos. Seu perigo, naïf, está no medo de parecer naïf. Depois inventa campos e adversários, engendra regras, chama-lhes batalha. 

Aprende como a vida paira acima do poema que paira acima da vida. É mais fácil assim, garante, contra-natura, simula a estação da fúria, a alta temperatura.

- Não há som sem transmissão de som. E estamos todos cá fora. 

...


The Drug War in Mexico is on the brink of tearing apart the country. Since December 2006, more than 19,000 people have died in battles across Mexico. Even to call it a “drug war” or a “war” does it a disservice. In many ways, what we see in Juarez (and Mexico) now is a new way of human beings interacting and fighting and killing each other. I suspect Roberto Bolaño knew there was something unique about this attitude towards death pre-2003.

One point I’d like to make is that the system that primarily fails Juarez (and Santa Teresa) is the civic system. It turns out to be a system that feeds on human bodies and deposits them in waste dumps outside the city limits. The religious system has failed (more on the Penitent later), the social system has failed, the federal political system is nonexistent, but the civic system is particularly accountable for the enforcement of local laws and the complete failure to maintain any sense of human dignity. One of the great secrets of the Part About the Crimes is that it is not just a litany of murders. There are other characters populating the storylines—but most of these characters hold civil offices: they are city police officers, investigators, contractors, employees of the city sanitarium. The economics of the city seem designed to rely on the availability of young, unskilled women to perform the tasks of the maquiladoras, and yet their relatively short lifespans mean that the true source of employment comes from the investigation of those murders, the enforcement of seemingly meaningless laws. And yet who has any idea how to stop the murders?

Aqui

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Da Luz Alvalade

Ir ao Estádio da Luz e de Alvalade para escrever são duas experiências distintas. Na Luz consigo carburar muito facilmente. Em Alvalade, enfim, é difícil, às vezes mesmo muito difícil, como contra o Wolsburgo onde já só me apetecia abandonar-me, invadir-me, ser adepto, ir ter com a malta, tornar-me um índio, fundir-me na fúria, no rugido leonino. 
No Estádio da Luz não, ponho-me a racionalizar a maravilha que é o Jonas, o Gaitán e o rolo compressor quando é ligado - com o Estoril, com o Boavista, com o Braga.... Que remédio! Compreender compreendo muita coisa. Quase toda a minha família é benfiquista e boa parte dos meus amigos, conhecidos então são mais que as mães... Depois, há aqueles que só aparecem quando o Benfica ganha qualquer coisa, aí é a surpresa: nem pensávamos que gostassem de futebol. Ingenuidade: a maioria dos adeptos benfiquistas percebe pouco ou nada de bola. Fala no glorioso, na chama imensa, mas não sabe um quarto da equipa titular, se é que sabe o nome de algum jogador. Mas enfim o Benfica é universal, joga na catedral, o Estádio mais parecido de todos com o que se passa cá fora. Está lá quase toda a gente.
Alvalade não, Alvalade é mais um culto, um exército de resistência. Mais pequeno, mais bem cerrado em suas fileiras. Metendo quarenta mil a muito esforço de dias enquanto esses vizinhos acomodam sessenta mil num abrir e fechar de bilheteiras. Não seja por isso, ir ao Estádio de Alvalade é bem mais intenso, por vezes até demasiado. Não é instantâneo como a Luz. Este e o antigo estádio. Falando da Luz, estive mais de vinte anos sem lá ir  - eu quando ia era para os lugares cativos de um primo mais velho, doido pela águia. Calhou eu ir nos melhores tempos do Eriksson:  7-0 ao Braga (eu vi), 8-0 ao Vitória de Guimarães (esse já não vi), 1-1 ao Sporting (o anti-climax, eu estava lá)... Agora, regresso como se nada fosse, e, toma lá cinco Boavista, toma lá seis Estoril... Esperem aí, menti à bocado, não foram tantos anos, sempre houve o Euro 2004 mais a sorte de um convite: a Inglaterra ganhou 4-2 à Croácia. Em suma, uma vindima. Mas nada como um 7-1 em Alvalade. 

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Democratismo

Toda a gente ignorante ter uma voz significa toda a gente ignorante ter uma voz. Não é mais nada. Ignorância voluntária não passa de ignorância voluntária. Não sabe porque não quer saber. Não quer saber porque se está nas tintas. Então não vota, ou então vota com o que não (quer) sabe(r). Qualquer ditadura receberá com o mesmo encolher de ombros - falará então da barriga. Dança a música da corporação, sempre é o que está mais a dar. Tudo e todos podem ser substituídos a qualquer altura, nada se altera. Não há cá reis nem vice-reis, czares ou imperadores, quem manda aqui são os accionistas. Ninguém, mesmo ninguém, se livra da cabeça de um accionista, é que nem o próprio accionista, que também depende do accionista, que também depende do accionista... Muito dinheiro-gera-dinheiro-gera-dinheiro, ou então inventa dinheiro, rotativas ou narrativas, tanto faz, que o que conta, afinal de contas, é o que aparece nos monitores. Também é preciso pilotos para tão velozes lanchas. Não há de haver travagens nem reduções de velocidade, mesmo quando muito se acelera, travões nem pensar. É sempre em frente, sim, o que é preciso é ir sempre em frente, nem direita nem esquerda, já não há direita nem esquerda - é tudo a mesma coisa, dizem -: «eu só penso em direita e em esquerda quando me apanho num cruzamento», dizia o outro dia alguém no facebook, desses que não vota, desses que de bom grado até substituiria a votação pela notação consoante os valores do mercado e as expectativas dos investidores. Assim como assim, de notação em notação, se classifica a coisa, perdão, a Democracia.«Money is the master», dizia Gabriel Byrne nesse filme de Costa-Gavras. Não é fácil. Convém que seja sempre Primavera. O crescimento não pode parar, nunca pode parar, se inundar constroem-se diques, fazem-se ajustamentos, constrói-se um mealheiro e põe-se milhões de pessoas lá dentro, magicam-se expressões, palavras novas como inconseguimento.


P.S. - a partir de uma ideia de Luís Seabra.

25.

Preciso interiorizar o que aconteceu. Mas só exteriorizando, na escrita, são precisas palavras. Caso contrário, só resta a amálgama primordial disforme. Sem qualquer trabalho de edição, de aperfeiçoamento, nada mesmo a ser melhorado. Nenhum poema, nenhum conto, nenhum texto, nenhum problema, nenhuma ideia. São gostos. Eu cá prefiro a crónica de nada à crónica do nada. Porquê? Porque é o melhor que se arranja. Não largar a mão para não perder o pé. 

24.

A história destes meus últimos tempos tem sido a história do meu cansaço. A aprendizagem do sono da guerra: um olho aberto o outro fechado, os dois olhos abertos ao mesmo tempo fechados. Gradações não é só do ver... Também há do dormir, do descansar, do fazer nenhum. Lá porque tantos perdem a capacidade total de concentração. Disse total, podia ter dito essencial. É que não precisam de mais, só navegam à costa. Disse dormir, podia ter dito acordar. 

sábado, 4 de abril de 2015

Pá, toca a escavar

Anda um amigo meu lá fora a arrastar-se. Deixa andar, deixa-se andar, nada a fazer. Não há nada a fazer, vais lá fazes nada, ele quer que tu pares, pares onde ele pára, pares. Ah pois, tens sempre de lá ficar umas horas, onde ele ficou, lá, naquela paragem. No seu caminho, sempre no mesmo sítio do caminho, portanto sempre no mesmo caminho, do mesmo sítio. Mas é só um bocadinho e lá ficamos. Ficamos, quanto mais não seja, porque se sente sozinho quando se encontra aborrecido, o que cada vez mais acontece, cada vez mais no mesmo sítio. Ganzas, cerveja, a merda da sociedade, política, a anarquia contra a anarquia, poder do contra poder, está bem, pois que mande, ou não mande, por mim não faz mal, por mim melhor assim, então está bem, concordo, não estou ali para me transformar em lobo. Então e gajas? Nem nenhuma, elas não alinham no plano de estratégia. Num ponto têm toda a razão: não há ali qualquer plano de estratégia, não há ali plano de coisa nenhuma, nem plano, nem planura, nem monte de terra sequer, nada a não ser ganzas, cerveja e o todo o poder contra de todo o contra poder. Por mim, já disse, repito, dava-lhe a ele todo o império. O meu também, já agora, desde que deixasse comigo o tempo. Certo, certo, tenho-o certo como o (mais) genuíno, o puro malte da autenticidade. É casco da madeira mais rara. Mesmo que me digam que estragada anda com aquela cara de amarelo bexigado. Figadeira? Nah, não há de ser nada. Ainda estão para aí os túneis que nunca há de percorrer, as montanhas virgens de si próprio - agora cheias de arame farpado. Problema maior são as passagens de nível, os guardas, as fronteiras... Bem juram que nunca o viram por lá. Eu via, via-o sempre, ali quieto nas cercanias dos bosques, abeirando-se da estrada, nunca perdendo o corte, a compostura, virada a norte, mas nunca arriscando qualquer sorte... É preciso reparar na espera contínua, é a da revolução, diz que ela chegará, um dia. E eu é que não era nada razoável, sempre à cata de milagres. Este gajo é doido, pensava, senão pensava, pensei, pensei até mais do que uma vez. Sem revolução não há milagres, respondia ele, ressentido por eu não acreditar nesse milagre entre tantos outros em que acreditava. O milagre dele sempre fazia parte da realidade, senão fazia, ao menos queria fazer qualquer coisa com ela, a dita, a dita coruja. Transformá-la. Ela quem? gracejava eu. Onde é que isso já se viu?, era nos outros o comentário mais em voga, eu nunca fiz caso disso coisa nenhuma, pelo contrário, ouvi-lo servia como pára-choques acolchoado. 
Dez anos depois, tudo na mesma, vinte anos, na mesma. Tire-se-lhe o chapéu ao seu aspecto, seco, limpo, sopimpa, ainda nas marcas dos vinte e poucos, jovem, quais bexigas? Se calhar eram de tanto esforço de Sísifo, dos pântanos, de andar atascado até aos joelhos. Ali, onde marcha sempre mais uma cerveja. Ai marcha, marcha. Então não marcha? Não marcha?

Cante

A indolência do sentir alentejano tem uma inusitada força, mas traz também a sua tragédia, a sua irreversível fatalidade. Que alimenta sua forma do sentir, magnânima. Que também o perde campos afora, nesse intenso milenar lamento. Vidas que cantam a falta do seu Alentejo, vidas que cantam a solidão do seu Alentejo, vidas que cantam a beleza do seu Alentejo. Como um fado, pode ser, mas sobretudo por outros ramos dessa mesma raiz - mourisca, por aqui mais descida (a) sul. Lamento que também noutro lado se ramifica no flamenco - mais (a) sul, sempre (a) sul. Labirintos beleza doutros (mouros) lamentos, fundo do fundo fundo onde nunca nos perdemos.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Ao Sonho Impunha-se o Cansaço

Ao sonho impunha-se o cansaço. O cansaço descansava-me as forças. Poderia até dormir de pé. Ao sonho não opunha a menor desistência. Sonhos impressionantes, sonhos impressionáveis, como a água. Nesse enquanto eu escrevia o sonho, esticadas as pernas sobre a secretária. Claro que se me inundara o chão da sala. Até via os peixes nadarem nela… No chão, debaixo dos meus pés, era como se estivessem num lago. Tinha a porta da varanda aberta. Não via como o rio vinha de fora. Para tirar as pernas da secretária, teria mesmo de acordar…

Manoel de Oliveira (1908 - 2015)




Às tantas andei a registar, depois perdi esse rasto. Ainda bem, sinal que me deixei disso, de registar o óbvio da marca do assombro, da aparência da imortalidade. Até hoje, pelo meio-dia. Manoel de Oliveira era uma lenda viva, um dos nossos verdadeiros orgulhos. De um povo que, enfim, na sua maioria, sempre aproveitou para bocejar com a figura - como aliás fazia (faz) com outros como João César Monteiro - e para dele fazer galhofa, a pura batota da ignorância. Filmes vistos = 0. O que anula logo um Vou Para Casa, Aniki-Bobó, um Vale Abrãao, A Caixa, o Convento, Non ou a Vã Glória de Mandar, Viagem ao Princípio do Mundo, etc, etc. Mais de cinquenta desde 1931, entre filmes, documentários e curtas-metragens esticadas à longevidade de 105 anos. Aos 106, claro, a obra era para continuar. 



Em cada instante a terra ainda consegue ser completa: é a única, e isso mesmo a renova.