quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O Lobo de Wall Street

Só agora vi "O Lobo de Wall Street", mea culpa é demasiado exagerado, mas é a tal coisa, fui deixando passar enquanto estava no cinema, já não é a primeira vez que deixo passar um filme, nem sequer é a primeira vez que escrevo aqui que deixo passar um filme... Também tivesse ido pela voz de alguns críticos e talvez mesmo nem escrevesse estas primeiras linhas. Recordo bem como usaram e abusaram do piloto automático, ou desse belo chavão do filme de encomenda - faltaria terem escrito que o filme é uma bela encomenda, foi quase. Tudo tão certo assim à laia de palpite como eu dizer agora, por exemplo, que a próxima eliminatória da Liga Europa com o Wolsburgo vai ter uma derrota 2-4 em Alvalade por causa daquelas, como agora se diz, transições meio-campo ataque que foram a receita certa para esses sacanas alemães pulverizarem o Bayern a semana passada. Como se, enfim, o Sporting não tivesse as suas armas, não estudasse o adversário, a sorte e o azar não fizessem parte, não se tratasse de uma eliminatória de competição europeia. Ou simplificando, como se não tivessem visto o Bayern, a esmagadora superioridade do Bayern. 
O cinema não é um jogo, bem sei, talvez o cinema negócio o seja, mas o raciocínio do crítico aqui é o do jogador de apostas: Leonardo Di Caprio ganhou os direitos do filme e contratou Martin Scorsese para o realizar, logo é um filme de encomenda. Não é que o léxico não vá lá. A palavra encomenda é que enfim, traz o recado, o envelope fechado, e imagina-se o resto - e aposta-se - atrás do décor, da direcção de actores, da mesa de montagem...
Scorsese é que não deve ter dado por nada, nem pela encomenda, nem pelo piloto automático onde andou uns bons meses, na cabeça de alguns, a viver e a trabalhar para esquecer, perdão, para aquecer. Da porém ficam algumas perguntas. The Wolf of Wall Street não é um dos clássicos scorseanos? Claramente não, não é um "Raging Bull", um "Goodfellas", ou um"Taxi Driver". Não é um grande filme de Martin Scorsese? Enfim, talvez, depende. Não é o melhor filme de Scorsese desde Casino? Isso já custa mais negar... Não é o filme que soa mais a Scorsese desde Casino? Isso então ainda custa mais... Mais perguntas: estão ou não estão ali ideias e bem definidas? E essa noção de desmedido que gostais tanto em "Goodfellas"? E aqueles planos sequência em voz off? E as inesquecíveis cenas improvisadas? Não está lá Joe Pesci a perguntar "funny how", mas está lá Matthew McConaughey numa cena de antologia, há um Jonan Hill em estado de graça a arrancar de improviso alguns tantos assombros, ou um Di Caprio com um discurso improvisado que ou muito me engano ou é (d)o melhor que fez em toda a sua carreira.
Não chega a Goodfellas, dirão os críticos - e digo eu - mas não são ou não são os wise guys mais interessantes que este tipo assassino de especulador da bolsa? Pelo menos são mais corajosos, arriscam a vida e vão mais vezes presos, perdoem-me a acidez. E faz ou não faz Martin Scorsese em O Lobo de Wall Street uma das coisas que sabe fazer melhor? A saber: mostrar o ponto de vista do personagem - seus pontos fortes, suas óbvias e não tão óbvias vulnerabilidades, seus pontos onde se deixa cair em tentação e não se consegue livrar do mal, amém.
Posso imaginar o busílis em torno da amoralidade que não deixa ver a imoralidade em causa. Entendo. Mas Scorsese é sempre demasiado inteligente para entrar em especificidades, é demasiado instintivo, sanguíneo, temperamental, interessa-lhe o particular, não o geral, interessa-se o indivíduo, a circunstância, a alienação, a tentação, a ambição, as marés onde (se) navega. E tantas são as marés vivas, por vezes o mar é tumultuoso, é preciso mãozinhas para guiar o barco (sabe Deus como) a bom porto... "O Lobo de Wall Street" não é filme denúncia, paciência. É do mais puro entretenimento, paciência. Problema é que denúncia melhor que muito filme denúncia, paciência. Ao mesmo tempo que entretém como o melhor entretenimento, paciência. Tem todos os ingredientes de uma boa comédia-denúncia, porém não se trata de uma comédia, longe disso, mesmo que faça nos faça rir de humor negro como o já mais que citado Goodfellas nos faz rir com arrepios na espinha. 
Ora voltemos ao Padre Nosso: os alçapões, esses tais lugares onde podemos cair em tentação e não nos livrarmos do mal. Claro que a desgraça e a ruína estarão lá no inferno à nossa espera, no nosso não, no inferno dos personagens, mesmo que tenham sobrevivido para nos contar a história. Ou que entretanto tenham sido "salvos" - como parece que o foram, pelo menos de uma longa pena de cadeia - quanto mais não seja pela confissão numa autobiografia que deu em best seller*. Martin Scorsese é um grande cineasta católico, porventura o maior de todos.


* - Henry Hill foi ao "confessionário" com Wiseguy pela ágil pena de Nicolas Pileggi, que Martin Scorese aproveitou. Jordan Belfort, com o seu The Wolf of Wall Street, que Scorsese também aproveitou - ou encomendou, ou segundo alguns, foi encomendado. Do primeiro abstenho-me de dizer mais, sei que morreu há mais de dois anos. Do segundo apenas sei que quase não devolveu quase dinheiro nenhum às vítimas do muito que foi mandado devolver
do muito que lucrou com o livro, com o filme, e com palestras que dá em todo o mundo com a notoriedade com ambos ganha.