terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Meritocridade

A manigância é a particular espécie de interesse das criaturas sem interesse. A particular e a única. Ler, escrever, pintar, ouvir música, fazer música, tocar um instrumento, ir ao cinema, a um teatro, ver um documentário, um museu, uma exposição, monumentos, animais de estimação, coleccionar coisas, línguas estrangeiras, viajar, gastar tempo em jogos de estratégia, poker de cartas, de dados, playstation, matraquilhos, snooker, ping-pong, budismo, yoga, zazen, artes marciais, esgrima, cozinha, ciência, banda desenhada, desenhos animados, carpintaria, olaria, um voluntariado, vinhos, whisky, cerveja, cocktails com álcool e sem álcool, almoçaradas, jantaradas, cerimónias do chá, vegetarianismo, naturopatia, massagens, acupuntura, horticultura, botânica, numismática, restauro, mergulho, peixes de aquário, mariscadas, charutos, cachimbos, crochet, artesanato, séries de tv, debates, economia, política, história, religião, filosofia, astronomia, astrologia, cosa nostra, anti-heróis, criminologia, geometria, espiritismo, maçonaria, segunda guerra mundial, teorias da conspiração, ovnis, ténis, jogos olímpicos, F1, motociclismo, andebol, voleibol, voleibol de praia, futebol, futebol de praia, futsal, Premier League, Serie A, La Liga, NBA, NFL, rugby, cricket, bowling, surf, bodyboard, canoagem, pesca desportiva, mergulho, escalada, caminhada, patinagem, skate, ciclismo, ciclo-turismo, xadrez, damas, dominó, roleta, roleta ru... Nada. Nada atrai o medíocre manigante. Podia estar aqui horas e o medíocre manigante não diria sim a nada. Falta de vontade? Pois é esse o problema, o medíocre manigante tem até excesso de vontade, vontade e muita ambição, ambição até de nos fazer a folha. E os desinteresses do manigante não são propriamente desinteresses, ele até os pode achar interessantes para o interesse da manigância. O manigante não se acha néscio pelo seu desinteresse nos nossos interesses. Ele é que nos acha néscios pelo nosso interesse nos seus desinteresses. Ele sabe bem de que lado está. Nós é que às vezes não sabemos. 

Nietzsche tinha aquela clássica tirada que dizia que o que não nos mata torna-nos mais fortes. Ora no manigante não é bem isso, no manigante o que não nos definha é que nos torna mais fortes. Então não definham nada, os manigantes, pelo contrário, é neles precisamente o tédio, o completo absurdo aborrecimento, a pasmaceira sem remissão e a aleatoriedade boçal que os fortalece perante o resto da espécie humana. Neste particular e não só, essa sub-espécie de espécie sem espécie de espécie alguma  - qualquer coisa que possa caracterizar o medíocre manigante é ameaça à sua própria sobrevivência - só existe e se caracteriza pelo que não tem. Com o tempo percebe-se porquê: não há nada para falar com o manigante que não meta de permeio as artes que só ele sabe da medíocre manigância. Seres ignorantes dos seus segredos, como é meu caso, sentem-se com o medíocre manigante sempre com vontade que acabe o tempo. Parece que estamos ali a jogar uma modalidade que detestámos na escola, tipo basquetebol (no meu caso). É para perder na certa, como é tão óbvio, e quanto mais demora a coisa mais porrada nós levamos. Depois aqueles terrenos lamacentos escorregadios, as mazelas a obrigarem ao possível recolher obrigatório, as energias dissipadas nos intermináveis caminhos da estupidez humana... 


Valha-nos os nossos terapêuticos interesses. Com eles reganhamos o tempo preso algures nalgum ferro afiado de qualquer armadilha armada pelo medíocre sujeito manigante. Depois sim, recuperados, revigorados e aliviados, constataremos mais uma vez assim um pouco aparvalhados (ficaremos sempre aparvalhados e jamais na vida compreenderemos a criatura manigante) como aquela salvífica medíocridade continuará ad aeternum exactamente na mesmíssima constante onda uniforme afinada pela porfia austera exigida pelo rigoroso trabalho da execução da manigância - haverá casos em que não resultando a manigância, o medíocre manigante até corre o perigo de não ter comida para pôr no prato. Por outro lado, se a manigância está mesmo a resultar, o manigante saboreará a comida de outra distinta maneira. Com o gosto revigorado, ficamos até com a ideia e a ilusão que o manigante ganhou finalmente algum interesse adicional na vida - neste caso na boa da comida. Nada mais errado. Manigante que se preza nunca larga de vista a manigância, nunca baixa a guarda, tem sua amada sempre bem perto, o esquema a trabalhar na cabeça. Cometerão pois caros leitores um erro fatal se virem no manigante alguma centelha de amadorismo. É outra vez o oposto contrário, tudo ali é profissionalismo, puro profissionalismo manigante. Nada, mesmo nada deve suspender a crença do manigante na manigância, nem mesmo um inesperado eclipse total do sol que lhes desse o escuro da noite às três da tarde. O que apenas seria um contratempo na manigância. Que isso da noite é em casa de preferência a pensar na manigância para o dia seguinte. 


William Blake dizia das águas paradas esperem veneno. De qualquer forma eu topo-os bem: no andar, na forma de olhar, em todo aquele suspeitoso mexer, na forma de rir (essa é a mais fácil), no falso brilho dos cabelos, no modo como lhes cai a roupa. Ao corpo, ao espírito, a obstinada tarefa. Pois está aí o problema do medíocre sujeito manigante: há ali toda a falta de presença de espírito. O tão não poder como não querer dar nada a querer pairar a dominar sobre tudo. O pé de apronto para a rasteira bem dada. O lusco-fusco para a pequenina intriga. As finas artes da hipocrisia. A selectiva contradição e suas demais incongruências. A afinada pontaria na areia para os olhos...