sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Al Capone da Conceição

Sabia-se, constava, que tinha emigrado para a América num grandecíssimo nevoeiro, com Detroits, Newarks e Elsewheres pelo meio, até que numa noite pressentira o beijo da morte a espreitá-lo numa esquina lá dos States e aportara a Lisboa sob o nome de Conceição. Chegou e sem perda de tempo tornou-se proprietário duma leitaria para disfarçar o passado que se calhar nunca teve e o quarto de jogo clandestino que instalara nas traseiras do negócio. Por isso é que nunca saía da mesa lá do fundo, olho no balcão e ouvido na parede que o separava dos jogadores.
Nas tardes da Almirante Reis, com os eléctricos a tilintarem, avenida abaixo, avenida acima, a leitaria era duma inocência comovedora. Dois ou três vadiantes em faz de conta a cervejarem ao balcão, um criado, dois anjos voadores a suspenderem um espelho na parede e o Al Capone em pessoa exilado numa mesa, a impor respeito ao ambiente.
Dali ninguém o arrancava desde o abrir ao fechar da casa; e palavras, o menos possível. Al Capone da Conceição comia de jornal aberto como nos filmes americanos, e se alguém lhe desejava bom proveito respondia com um aceno numa sílaba por cima das entrelinhas.
A um, que se chegou à mesa dele para o cumprimentar, «Como vai, senhor Conceição?», deitou-lhe um olhar indignado e deu-lhe a resposta devida:
«Tem alguma coisa com isso?»
Às vezes entrava o Mil e Quinhentos, que era um polícia da esquadra de Arroios enxertado de chacal, um demónio artilhado de fogante e cassetete, mas nem a esse o Capone se prestava a falar. Na sua qualidade de comerciante e de cidadão legalizado, deitava-lhe um aceno de cumprimento, ficava-se a vê-lo pelo espelho a despachar as duas cervejas da praxe e deixava-o sair sem pagar por entre os dois anjos de latão.
Este Mil e Quinhentos metia medo só com a sombra. Se não chegara a chefe era porque isso de chefe o obrigava a trabalhos de secretaria, que não se davam com o seu feitio e ele gostava era de fazer o gosto ao dedo quando o gatilho lho pedia ou de afagar o lombo dos distraídos com o cantar do cassetete . «Tenho os meus métodos», dizia.
Certo, certo na leitaria da Almirante Reis era um Martins, a quem chamavam o Mãos de Seda, por o dizerem carteirista a tempo inteiro e pelos muitos saberes dos seus dedos no trabalhar as cartas e os dados. Baixo e entroncado, tinha um sorriso muito fresco, apesar de já andar pelos quarenta, e, caso especial, apreciava o bem falar. Tanto que, quando um dia o Al Capone ordenou ao empregado que mudasse os róteis dos boiões dos caramelos, não resistiu a deitar-lhe um meio sorriso atravessado:
«Róteis? Rótulos, senhor Conceição. Rótulos é que o senhor quer dizer.»
O outro encolheu os ombros com desprezo: «Acha?»
«Claro. Rótulos e não rotéis, senhor Conceição.»
«Homem», respondeu o Capone, «rótulos é para as garrafas, róteis é para as caixas», e, ponto final, abriu o Diário Popular e mergulhou na página das palavras cruzadas.

José Cardoso Pires, A Cavalo no Diabo, Círculo de Leitores, 1995