Sabia-se,
constava, que tinha emigrado para a América num grandecíssimo
nevoeiro, com Detroits, Newarks e Elsewheres pelo meio, até que numa
noite pressentira o beijo da morte a espreitá-lo numa esquina lá
dos States e aportara a Lisboa sob o nome de Conceição. Chegou e
sem perda de tempo tornou-se proprietário duma leitaria para
disfarçar o passado que se calhar nunca teve e o quarto de jogo
clandestino que instalara nas traseiras do negócio. Por isso é que
nunca saía da mesa lá do fundo, olho no balcão e ouvido na parede
que o separava dos jogadores.
Nas
tardes da Almirante Reis, com os eléctricos a tilintarem, avenida
abaixo, avenida acima, a leitaria era duma inocência comovedora.
Dois ou três vadiantes em faz de conta a cervejarem ao balcão, um
criado, dois anjos voadores a suspenderem um espelho na parede e o Al
Capone em pessoa exilado numa mesa, a impor respeito ao ambiente.
Dali
ninguém o arrancava desde o abrir ao fechar da casa; e palavras, o
menos possível. Al Capone da Conceição comia de jornal aberto como
nos filmes americanos, e se alguém lhe desejava bom proveito respondia com um aceno numa sílaba por cima das entrelinhas.
A
um, que se chegou à mesa dele para o cumprimentar, «Como vai,
senhor Conceição?», deitou-lhe um olhar indignado e deu-lhe a
resposta devida:
«Tem
alguma coisa com isso?»
Às
vezes entrava o Mil e Quinhentos, que era um polícia da esquadra de
Arroios enxertado de chacal, um demónio artilhado de fogante e
cassetete, mas nem a esse o Capone se prestava a falar. Na sua
qualidade de comerciante e de cidadão legalizado, deitava-lhe um
aceno de cumprimento, ficava-se a vê-lo pelo espelho a despachar as
duas cervejas da praxe e deixava-o sair sem pagar por entre os dois
anjos de latão.
Este
Mil e Quinhentos metia medo só com a sombra. Se não chegara a chefe
era porque isso de chefe o obrigava a trabalhos de secretaria, que
não se davam com o seu feitio e ele gostava era de fazer o gosto ao
dedo quando o gatilho lho pedia ou de afagar o lombo dos distraídos
com o cantar do cassetete . «Tenho os meus métodos», dizia.
Certo,
certo na leitaria da Almirante Reis era um Martins, a quem chamavam o
Mãos de Seda, por o dizerem carteirista a tempo inteiro e pelos
muitos saberes dos seus dedos no trabalhar as cartas e os dados.
Baixo e entroncado, tinha um sorriso muito fresco, apesar de já
andar pelos quarenta, e, caso especial, apreciava o bem falar. Tanto
que, quando um dia o Al Capone ordenou ao empregado que mudasse os
róteis dos boiões dos caramelos, não resistiu a deitar-lhe um meio
sorriso atravessado:
«Róteis?
Rótulos, senhor Conceição. Rótulos é que o senhor quer dizer.»
O
outro encolheu os ombros com desprezo: «Acha?»
«Claro.
Rótulos e não rotéis, senhor Conceição.»
«Homem»,
respondeu o Capone, «rótulos é para as garrafas, róteis é para
as caixas», e, ponto final, abriu o Diário Popular e mergulhou na
página das palavras cruzadas.
José Cardoso Pires, A Cavalo no Diabo, Círculo de Leitores, 1995