quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Os Idiotas



Escrito na primeira pessoa, em registo de pseudónimo, entre um ficcionado auto-biográfico e o auto-reflexivo, a figura do idiota funciona em "Os Idiotas" de Rui Ângelo Araújo como o fio condutor, o pretexto, o ponto de mira para um olhar sobre os dias. Há muita matéria a ser trabalhada. Os enganos e falhanços da vida, um quotidiano estéril, falho de horizontes, típico de tantas zonas do país. Sobre o que paira a corrupção generalizada, a praga do populismo, um povo ignorante e domesticado, a infindável burocracia... "Os Idiotas" de Rui Ângelo Araújo não é romance que se dê a poupanças. A pena ágil, certeira e afiada do escritor não está ali para tréguas. Carapuças à parte, podemos nós também ter um pouco do idiota descrito no livro, por mais ténue que seja. Ou conhecemos alguém, amigo, conhecido ou familiar que se enquadrem nele perfeitamente - eu pelo menos conheço. Sem sabermos o local exacto do país onde se desenrola a trama  - que passa também por Bucareste e Vietname - é muito de Portugal (sob a forma de uma pequena cidade de província) que está ali descrito, qual McGuffin com a premissa obrigatória de que isto não vai acabar propriamente bem, ou pelo menos não vai dar a lado nenhum. Qual praga ou maldição que nos arrastasse para o beco sem saída. Dito isto, não pensem que "Os Idiotas" reflecte apenas negritude. Pelo contrário, seu tom destoa, e ainda bem, deste marasmo que nos atordoa. Há ali genica, dinâmica, ritmo e carradas de humor que nos presenteiam a leitura por outras e variadas direcções. Do mais, "Os Idiotas" é romance de pesos e contrapesos. Na escrita, por exemplo, mesclando elementos de erudição e riqueza de vocabulário com um cardápio generoso de obscenidades (bem disse que não é livro dado a poupanças). Ou entre um certo tom pulp e despretensioso e a fina tragédia existencial. Ou de vez em quando entre a comédia sem remissão e a dureza da fossa

Se falei em marasmo, cidadezinha de província, calão avançadocomédia tresloucada, Roménia e Vietname, era de Lúcio Peixe* que falava. É ele o personagem, pseudónimo e idiota de serviço em quase todo o romance. É um idiota especial - para não dizer o idiota perfeito, o que levaria a pensarem no perfeito idiota, o que está muito longe da verdade. Cronista do quotidiano e escritor de encomenda (ghost writer) e blogger capaz de gerar algum culto em redor, Lúcio sabe dar à (sua) realidade uma visão original e muito particular, capaz de por pinceladas certeiras e inteligentes nos dizer de sua justiça. Ganhamos-lhe simpatia e empatia, vemos que sabe mais do possa parecer à primeira vista, que o seu estar nas tintas tem um quê e porquê, por mais errado que o julguemos. Tem ele essa vantagem, não é idiota como os outros, vive nos seus próprios termos, pensa pela sua cabeça. No mais é um ser sensível e ferido, anestesiado em cervejas e alienado quanto baste, ele e seus amigos idiotas, cada um com seu karma e história distintas - nisto as mini-biografias de cada um dos idiotas nos inícios do romance estão em perfeita conformidade - a acabarem por desaguar no mesmo lugar: a sua própria casa, a casa de Lúcio Peixe. Inadaptados a um mundo que os rejeita, parecem afinar todos pelo mesmo diapasão. Lúcio Peixe acaba por ser o involuntário líder da quadrilha, ele que é o mais carismático. Também o mais individualista e lúcido, o que tem ao menos um olhar sobre o (seu) mundo e o sabe escrever. Mas não é apenas Lúcio Peixe que  escreve em "Os Idiotas". Há ainda Helen. 

Mulher que também poderia ser um romance, com Helen o enredo faz um autêntico u-turn. Para onde, não sabemos (eu imaginei, mas imaginei mal). A obra é com Helen estruturada para outra dimensão, como que do nada, sobrepondo à leitura uma nova (outra) leitura. Aqui é outro contrapeso, mesmo a escrita é ligeiramente diferente pelo sentimento, leitura e interpretação femininas apanhadas de forma assaz interessante, eficaz e bem conseguida. Mesmo que no computo geral as duas vozes cantem de forma muito similar. Posso estar enganado, mas nisto o escritor, omnipresente claro está, acaba por fundir as diferentes vozes à sua voz, talvez mesmo as discipline, ou não, só mesmo o próprio o poderá responder. Em ambos os casos temos capacidade de alcance e poder de encaixe. Depois o fôlego, o ritmo, o saber na descrição de personagens, no engendrar das situações para um desejado enquadramento. Essa capacidade de fixar e fotografar o real enquanto se prossegue em inusitado fluxo de consciência é um fortíssimo atributo de "Os Idiotas". 


* - Lúcio Peixe está ali na capa, ao lado do seu Ford Capri, em extraordinária ilustração de Eduardo Ferreira. 

PS: obrigatório o texto de apresentação do livro por José Rentes de Carvalho. É obra-prima.