quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Tudo parecia rimar


Embarcar para França no Chicago no princípio de Junho foi como ter de deixar bruscamente um livro que andasse a ler e não tivesse terminado. Ned e a mãe e Mr. Cooper e a senhora letrada consideravelmente mais velha que ele com quem tinha dormido várias vezes muito desconfortavelmente no apartamento de dois pisos que ela tinha em Central Park South, e a sua poesia e os seus amigos pacifistas e as luzes da Marginal tremulamentte reflectidas no rio Charles esbatiam-se no seu espírito como parágrafos de um romance posto de parte sem acabar de ler. Ia um pouco enjoado e um pouco assustado com o barco e a multidão alcoolizada e barulhenta e as lúgubres mulheres da Cruz Vermelha a arrepiarem-se umas às outras com histórias de bebés belgas a assarem no espeto e de oficiais canadianos crucificados e de freiras idosas violadas; sentia a espiral de tensão de um relógio com a corda excessivamente enrolada de tanto imaginar como seriam as coisas por lá.
Bordéus, o rubro Garona, as ruas pastel de casas velhas e altas como telhados de mansarda, o sol e a sombra tão delicadamente azuis e amarelos, os nomes das estações todos tirados de Shakespeare, os romances de capa amarela nas estantes, as garrafas de vinho nas buvettes eram diferentes de tudo o que imaginara. Todo o caminho até Paris os campos vagamente verde-azuis se polvilhavam de escarlates papoilas como os primeiros versos de um poema; o pequeno comboio avançava sacudido em dáctilos; tudo parecia rimar. 


John Dos Passos, 1919, Editorial Presença, tradução João Martins, 2010