quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Só falta tocar



Há uma inventividade, energia e grau de aleatório que só podem vir do mais intricado dos realismos. Onde nada do que parece é e num momento tudo se transforma. Aí as formas não existem vincadas a priori, como num enredo mais clássico, nem se deixam ir ao sabor do vento e dos humores do momento; as coisas são como são em Baltimore e não só, na verdade todos nós somos irremediavelmente joguetes de corporações e o jogo está truncado.
Polícias, gangsters, estivadores, políticos, professores, alunos, jornalistas, advogados, todos em barcos diferentes dentro do mesmo rio turvo e perigoso. Muitos a tentar viver da melhor forma possível enquanto se tentam salvar e as feridas não parecem estancar. Não existem aqui maniqueísmos, todos os lados têm o bem e o mal. 
Vendo no You Tube alguns documentários sobre o fenómeno, os cidadãos de Baltimore falam em 99,9% de veracidade, mais que factualmente, é a reprodução desses viver que sai decalcado em "The Wire". O que não cola ali é o argumento de que a criminalidade não é desculpa ou que todos se podem salvar numa cidade com seis vezes a criminalidade de Nova Iorque. Claro que há quem se salve ou se redima, mas não se podem salvar todos. 
Os criadores da obra não se limitaram a investigar o terreno ao pormenor, eles proprios foram parte dele, e durante quase uma vida: Ed Burds, como ex-polícia,  pela maior parte das experiências que servem de matéria prima à série; David Simon (ex-repórter do crime) concebendo-as e pondo em papel, adicionando também as suas como repórter do Baltimore Sun (nomeadamente na 5ª série). Todo o lado da rua - através dos gangs e dramas adjacentes e associados -, experimentaram os dois durante meses, vivendo literalmente no terreno, ao que muito ajudou terem levado ao hospital um "soldado" baleado, o que abriu todas as portas para um acesso"all areas". 
O registo esse jamais foi experimentado e a credibilidade dos criadores serve também de combustível a todos os que dela fazem parte e ao colossal esforço necessário para levar avante algo que nunca foi tentado nem ao de leve. Arrisco dizer que todos experimentam a mesma voracidade, a mesmo desesperança. Para mostrar-nos num espelho a forma como podemos ser esmagados. Do que fica praticamente só nos falta tocar.