quinta-feira, 1 de novembro de 2018




Billie Holiday e Louis Armstrong e Tom Waits e Leonard Cohen. Depois também Pink Floyd e Dire Straits e King Crimson (“Moonchild”, nem por acaso). O locutor não sei se bebia pouco, se bebia muito, se sequer bebia, sua voz, porém, trazia o decoro do whisky aliado à pujança contida de algum cowboy solitário. Forte e encorpada, mas ao mesmo tempo terna e discreta quanto baste para se exibir pouco, para deixar para no(s) ar(es) o(s) subentendido(s). Não dar nas vistas e ao mesmo tempo inebriar esse ouvinte desconhecido da noite. Partilha de solidão, não solidão de partilha. Sim, há uma poesia da rádio. Poesia que pode nem sequer ser poema. Pode ser voz, música, apenas som, só a noite na Terra. Como um bom vinho que ampara a insónia mais profunda, que não adormeça o incauto, mas também não o desperte por aí além, mantendo-o alerta nalgum automóvel de qualquer longínqua estrada ou auto-estrada. Também aqui trago a infância a ouvir rádio da noite nas viagens de carro com meu pai, ou já na adolescência, numa tenda a acampar ouvindo o rádio-gravador Sanyo cercado pela caruma dos pinheiros abrigado na suave textura de um saco cama. Lembrar-me e pensar que a rádio, o grande problema da rádio, é mesmo, só mesmo, o esquecer-se de si própria. É o que acontece com tantas emissões diárias, a maioria, já nada de rádio têm, até ao dia em que todas as memórias se apaguem. Nisto a noite ainda é a última barreira, a guarda pretoriana, o último refúgio, seu porto de abrigo das tempestades, estalagem perdida na Antártida, abrigada zona de recolha e silêncio, onde uma voz no ar ainda nos pode servir de farol pelo oceano da noite.


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