Costumava chamá-lo de Gajo. De manandro do camandro, é que o gajo não é bem malandro, então chamava-o antes de manandro, de manandro do camandro.
Um jóia de boa pessoa, uma lição de vida, o Gajo. Nunca se queixava, a não ser
depois, depois de velho, com a horrível dor da pedra nos rins, mesmo assim tão
estoicamente que até fazia dó. Coisas da forma de (o) ser. É que o Gajo ria, ria, ria com a vida, e ria para a vida com uma euforia extrema. Era mesmo assim, o Gajo. A suprema festiva vida do Gajo era motivo mais que justo para festejo, que era mesmo assim sua forma de estar, de não ser sozinho, num festejo. Gostasse o Gajo de beber senão água e
seria um extraordinário companheiro de copos. Sempre contente e pronto a entabular a conversa, o Gajo. Não era preciso muito, um carinho
naquele pelo da cara de barbas de Pai Natal e cuidado, não fosse o Gajo entrar em beatitude. Então se o nível de gratificação aumentasse, tipo "vamos à rua, Gin", ou se numa voz sádicazinha de fomes de comidas falássemos em carninha ou ossinho então o Gajo perdia-se das adrenalinas, era como se tivesse acabado de ganhar um Oscar. Ele lá sabia, o Gajo.
Já vão uns bons anos, estava eu incrédulo quase a chorar o
falhanço da ida do Sporting à final da Taça UEFA, que sabemos que ia ser em
Alvalade, quando Miguel Garcia marcou aquele golo no ultimo segundo do jogo e eu
disparei-me em pilhas de euforia para semanas inteiras. Sentia-me uma autêntica máquina
de rega descontrolada. Berrava GOLO, corria, gritava, nem dei pelo Gajo, que olhava para mim como que a dizer “Olha. Ensandeceu...!”. Depois ia
para perto da Dona, como que a pedir-lhe uma explicação, como que a precisar de desabafar, como que cheio de necessidade de discutir, de debater, de matutar em mim. Não sei o que dona ouviu, mas disse: “vai dar uma festa ao Gin,
ficou muito preocupado contigo...”. E eu lá fui dar uma festa ao Gajo e o Gajo
começou a rir outra vez. Também qual era a dele, armado em quê? O chavascal quando era para ir à rua era umas
cem vezes superior ao estaradalhaço que eu dei com a primeira final europeia da
minha vida...
O Gajo gostava e queria tanto sempre ir à rua que ficava atento
a todo e qualquer mínimo pormenor. A intuição essa apurou-a tanto que
até cheguei a um ponto em que me bastava pensar nisso para o Gajo entrar logo de imediato em festejos - quem não acredite, não acredite, agora já não dá mais para fazer uma aposta. Poderia, quem sabe, até
ganhar dinheiro com isto, tinha de arranjar um lugar, um palco, só não podia é ser na rua, e com muito pouca gente
que o Gajo era de se distrair facilmente.
O processo esse começara uma vez com um
simples queres ir à rua?; - assim se arrastou umas semanas; depois, passou para um vamos à rua?; mais uns tempos e depois
passou para um vamos?; depois para um Vam, depois para um V, depois, enfim, depois quando já não havia mais nada verbalmente a decifrar restava o quê? Um olhos nos olhos. Era a coisa mais fácil bastava olhar o Gajo a pensar nisso, no mesmo: na rua. O que é que mais restava para, como dizer, aperfeiçoarmos a comunicação. Telepatia à distância, pois claro. Então bastava pôr-me de costas a
pensar no assunto, ele adivinhava. Claro que ainda tive de inovar mais, pôr-me na cozinha a pensar nisso com o Gajo na sala. Era só esperar que do nada começasse a ouvir aquele ladrar doideufórico. Ladrava, ladrava, ladrava, parecia um huno a saquear
Roma, grande caixa toráxica devia ter o Gajo! Tinha logo de pôr a trela,
qual armadura, e sair logo porta fora escadas abaixo não fosse ele virar o prédio de
pantanas com aqueles ladrares entusiástico-histéricos. Depois, já na rua, era um gajo doido a querer saber de tudo, da
relva mais limpinha ao canteiro mais javardo. Claro que ia ficar tão roto com o passeio que à noite até lhe daria para ressonar... Mas sempre a acordar com esse sono leve-vigilante de cão um dia tive mesmo de lhe provocar: “sonhaste com quê, Gin? Foi com carninha?” Nem respondeu, não estava ao seu nível.