A
realidade é outra e demasiado profunda a sua tragédia para a
podermos redimir. Os bárbaros justificaram-se com o cristianismo
aproveitado à pressa mas que preencheu dois mil anos. Os bárbaros
de hoje não têm um sucedâneo desse cristianismo para o
aproveitarem. A grande dignidade do homem foi toda a sua criação em
torno de um mito e da força que vinha nele. Mas nenhum grande mito
hoje pode ser mais forte do que a nossa consciência, nenhum mito
assim a pode subjugar. Assim talvez o homem viveu até hoje pelo que
pôde saber e viverá amanhã pelo que puder esquecer.
O homem viveu até hoje pelo que acumulou de dignidade – e viverá
amanhã pelo que acumular de desumanização. No limite disso, porém,
no limite do autómato gregário, há-se haver um instante em que ao
menos por descuido ele se interrogará sobre o seu destino. E tudo
então recomeçará.
Vergílio Ferreira, Conta-Corrente III, Livraria Bertrand, 1983, p. 100-101