sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

(Notas de) Cavalo Dinheiro

1- Robert Brésson, Straub/Huillet, Godard, Tourneur, uns mais que outros (até) podem servir como aproximação ao cinema de Pedro Costa. Não chegaremos perto, talvez nem à metade, talvez nem à metade da metade, sentimo-lo, conta a voz do momento, conta aquilo que não sabemos, aquelas pessoas-personagens ficcionando memórias, ou melhor, realizando memórias. Com a diferença de se conseguir atravessar a parede traiçoeira do documentário ao (puro) cinema - a parede é dura, as marcas sofridas feridas da vida. 

2 - Em todo(s) o(s) plano(s) (des)assombro, clareza, pureza sem mácula. A coragem típica dos cineastas criadores da (sua própria) gramática  - como os já citados, ou um Pasolini, Bergman, Aki Kaurismaki, César Monteiro, Ford, entre outros únicos irrepetíveis - navegadores do perigo, dos territórios inexplorados, das visões que se permitem (como consumação) até às últimas consequências, escavando (todo) o cinema possível, conquistando (o seu próprio) território. 

3 - Cavalo Dinheiro é de uma profundidade tal que muitos de nós, presumo - que de uma maneira ou de outra, viveram e vivem, mesmo ignorando paredes meias, toda a realidade pós-25 de Abril  - o podem ler como dos filmes mais profundos  - de uma profundidade insondável, incomensurável, cheio de raízes passadas e extensões futuras -, negros e fantasmagóricos que viram em vida. 

4 - O plano parece iluminado entre o sentido material e espiritual do termo - olha-se o que se olha, vê-se o que não se vê. Ouve-se o que se ouve, sobretudo o que não se ouve. Tudo parece (e provavelmente é) estudado, trabalhado e improvisado para o (seu) momento, para a pura declaração do que é. E não é bonito de se ver, pelo contrário, confronta-nos (com) o esquecimento prestes a saltar para o reino do nunca mais: esse país que fingíamos que não víamos (abandonado), e que assim ignorado cresceu (em miséria, desespero, decrepitude, doença). Criado ou escravo, tanto faz, o dia é para acabar na barraca, agora no bairro social dos subúrbios, mesmo ás portas da cidade. 

5 - Assim nascem aqueles personagens, que são pessoas, mais pessoas que (todos os) personagens. Personagens que aliás nem pensaríamos que alguma vez pudessem existir e ser possíveis, pessoas que jamais imaginaríamos que alguma vez se tornariam personagens - tão absurdas como reais, tão irreais como de carne e osso. 

6 - Porém o assombro cinematográfico, a obra-prima - que o é - não é aqui o que mais interessa. O que mais interessa é essa verdade que se impõe, e essa verdade - como aliás o realizador - está longe, muito longe de toda a mise-en-scène desta sociedade do espectáculo, das maquinarias da (sua) produção... A cena final no elevador entre Ventura e o homem-estátua-soldado do MFA é bem a medida dessa verdade. Aquele soldado tem a voz dos fantasmas de Ventura. Acontece que alguns desses fantasmas também são nossos fantasmas, contemporâneos que somos, nem que apenas como descendentes, de toda essa realidade (de memória transmitida). Também é como se algo dentro de nós nos dissesse: "Um soldado do MFA, com que então!". Sim, um soldado do MFA. Como arquétipo, como arquétipo entre arquétipos esquecidos, esquecidos como tantos deserdados dos PALOP.