domingo, 26 de outubro de 2014

Estacionados e Agachados

Andamos todos ao mesmo, dizem certos. Não quero concordar. Porém circundo o bairro, são quase duas da manhã, e é como ver carros estacionados contornar a cidade inteira. Juventudes do presente, old vintage, velha guarda, num bar todos se guardam do tempo em reservas ultra-condescendentes. Portanto tudo na mesma, pior que a lesma. Nunca nos mexemos e mal contornamos os obstáculos. Estacionada no passado, a antiga expressão andamos todos ao mesmo soa ainda pior hoje. Do mais, é uma expressão feia, agachada, pior que a vulgar meter todos no mesmo saco. Na verdade, este ar aqui nunca foi fresco, puro só mesmo fora deste transito humano estacionado. Não há lugar para ninguém. Culpam, reculpam, desculpam, mas sempre consoante o estacionamento. Vá-lá que os automóveis guardam segredo. Não têm nada a ver com isso. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Navegação Ponto por Ponto

1 - Como é que o homem aprendeu a navegar? Tirou uma carta de marinheiro. Coisa recente. Antes podia ir navegando, navegando e navegado, lá ia escrevendo essa carta. Então era um ponto a ponto, ponto por ponto. Aos poucos, partindo, chegando, naufragando - das jangadas às barcas, das barcas aos navios mais avançados: petroleiros, cruzeiros, porta-aviões, cacilheiros... 

2 - Dizia que era giro o que dizia, giro no sentido de engraçado, com piada no sentido de gozado. Cheio desse sentido de humor unilateral que quer que os outros achem graça como George W. Bush queria exportar Democracia para o Iraque. 

3 - Gostava de ver-te tirar carta de marinheiro. Mais ainda que a escrevesses. Ponto por ponto. Escrever como? Pois, boa pergunta: escrever como? 


4 - Antes escrever o presente que editar o passado.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A Maldição do Detective

Quem viu a absoluta obra-prima (assim mesmo: absoluta obra-prima) que foi essa incrível série da HBO chamada "True Detective" sabe bem o que significa a Detective's Curse. Aplica-se à vida, claro. Então em relação à "incompetência" (as aspas são absolutamente deliberadas) deste Governo, o que está à frente do nariz é tão óbvio que nem parece verdade. Mas não é? Está mesmo à frente do nosso nariz. 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sentido

A palavra Sentido é o Santo Graal, o El Dorado. É o que quiserem da nossa língua, a palavra sentido pode até trazer em si o Quinto Império. É uma arma de construção maciça. Funde sentimento com direcção. Ou sentimento com propósito e direcção. Por outro lado, também pode tornar uma pessoa sentida. Ou deveras sentida. O que pode ser bom. Também pode ser mau, seu pólo negativo mostra que também pode ser uma arma de destruição, não diria maciça, mas no mínimo destrutiva. Tudo depende pois do uso que se dá ao sentido. Tanto do uso do seu sentido, como do seu uso sentido. Tudo faz sentido pelo sentido. 

Snobeira

A única diferença da snobeira de esquerda para as outras snobeiras é que esta acha que não é snobeira. E achando que não é snobeira também acha que tira o cavalinho da chuva à mais habitual snobeira, pois que sua autenticidade e pureza está imune e acima de toda a snobeira - essa coisa de direita, queque, essa coisa de classe... 
Já a snobeira de direita é uma snobeira que se orgulha e muito de si mesma. Auto-consciente e auto-estimada, bem trabalhadinha e aprumada, não se estranhe por isso que traga consigo uma mais variada gama de trejeitos e remoques, de tiques e de toques. De resto, zomba da snobeira à sua esquerda, sabendo que também ela é zombada. 
De resto, é tudo farinha do mesmo saco. Pudera, vem da mesma colheita, o produto é o mesmo. Nada difícil de entender à luz de umas luzes de Charles Darwin. Pensemos no exemplo dos ursos e suas diferenças devidamente adaptadas a cada meio ambiente natural. Um teve mesmo de se tornar branco (o magnífico urso polar), os outros, enfim, nem por isso. Mas são todos ursos. Ou não são ursos? 

Mímicas

- Ser adulto é saber ler as temperaturas e os diferentes comprimentos de onda. Mas não é preciso ter um termómetro...

- És jogo de ti próprio mais do que jogas o jogo de ti próprio.


Um simples propósito não quer dizer um de propósito, menos ainda um a propósito. Lá porque se combina bem, não é para ser sempre combinado. 

- Fatal erro de equilíbrio: confundir um desequilíbrio, com um em desequilíbrio. 

Jornal

Olhe-se bem para a etiqueta: não traz informação classificada. 


Algures no Peru, milhares deles se juntam na praia como numa romaria. No mar, dezenas ou centenas vão para ali saltar acrobacias, quais surfistas sem tábua. Mais também parecem ginastas olímpicos com seus mortais além  da crista da onda. Secção essa excelentemente narrada por Josh Brolin para a série documental Untamed Americas, que gravei há uns tempos ao acaso e é uma maravilha que não sei bem ainda como classificar, a não ser que dá no canal National Geographic. O que mais nos maravilha ali é a ideia, o rigor, a tenacidade que se sente em todo um trabalho de transposição de uma realidade instantânea e irrepetível, capacidade essa de não apenas dar a ver - o que faz toda a diferença - a mesma Natureza em seus enredos que amiúde repetidos acabam por aborrecer o leigo que apenas constata que as espécies existem. Género quem vê um vê muitos* .
Apanhando de tudo um pouco ao longo de todo um continente de norte a sul - do Alasca à Patagónia - tanto faz que seja ordenada ou aleatória a forma como é apresentada cada espécie ou situação dentro da temática de cada um dos quatro episódios: Montanhas, Costas, Desertos, Florestas. 
Uma banda sonora de reminiscências cinematograficas (a fazer lembrar o Paris/Texas ou qualquer road-movie que se preze) seguida pela sentida e impressiva narração de Brolin através de um texto que em sua verdade, metáfora, timbre e imagética consegue em cheio fundir ideia com presença. Ora é precisamente o que se vê que acaba de servir como mote. Cada sujeito, cada assunto, cada espécie, há ali muita coisa para contar, não temos apenas as belas ou tristes histórias de quem sobrevive ou não, e de quem se impõe ou não se impõe.
Cada espécie em sua especificidade que aprofundada se pode tornar idiossincrasia; ou com melhor sorte, ainda pode descambar em fábula. Falo em fábula moderna, ou pós-moderna,  se quiserem, também pode ser. Não, aqui já não é apenas o leão que vê e a fêmea que caça e a ursa que hiberna e depois tem de caçar. Não, somos muito mais parecidos com os animais do aquilo que pensamos. [continua...]

* - tive de ver muito documentário de leões na savana em criança e não só para, como simples leigo,  estar habilitado a dizer isto, alguns de vós também, aposto. É quase senso comum. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Um Diabo no Paraíso

O diabo está nos pormenores. Conrad Moricand, tornado (o) personagem de Um Diabo no Paraíso, de Henry Miller, adivinhara os signos de todos os comensais numa qualquer mesa de jantar. Podiam até mesmo estar de costas. Mesma coisa com certa senhora que, sei de fonte(s) fidedigna(s), olhava para alguém e logo lhe adivinhava o signo, o ascendente, a lua e o pormaior do pormenor do aspecto e da conjugação planetária...
Fernando Pessoa falhou o dia da sua morte em exactamente seis meses. Ele que previa e intuía bem dentro da alta astrologia. Mas que também recusaria saber numa mão seu Destino. Porque não somos donos do nosso Destino, dizia. Desta tomada de posição a propósito das artes de adivinha, e a previsão de seis meses certeiros ao lado da morte, há de haver um longo caminho escuro a percorrer. Ou mais prosaicamente, um valente buraco no texto. Ou talvez não. O suposto Diabo no Paraíso já não saía sequer do seu quartinho alugado. Capricórnio de signo, regido por esse Saturno de toda a limitação, como não podia deixar de ser, achava ele que nada podia fazer para poder lutar contra toda a adversidade que vinha escrita nas estrelas. As cartas, os horóscopos, alguns mesmo colados à parede, não o deixariam mentir... Tudo na miséria dos aspectos astrais batia certo, calculado, fazia todo o sentido. Entretanto desenrolava-se em todo o horror a Segunda Guerra Mundial. E entre os bombardeamentos, o ocultismo das cartas.
Eis tudo o que me lembro da leitura há mais de vinte anos desta singular obra de Henry Miller. Não era preciso ser uma obra-prima quando o que mais dali advinha era a fúria escarrapachada por e/ou contra aquele amigo que às tantas já não sabemos se afinal era um ex-amigo. Porque o que sobressai mesmo é essa zanga de espécie, essa tão humana zanga, que mais não é que uma imensa fúria contra o desagradável aviltamento humano. Existe mesmo gente assim. Gente que se torna impossível caída que está no paradoxo de adivinhar seu futuro. Escrever parece pois essencial para interpretar o fenómeno, não necessariamente o futuro, mas pelo menos certa gente. E apanhar o diabo nos pormenores. Talvez mesmo nalgum paraíso. 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

22.

Fugir de algumas praias em épocas altas é também estar em consonância com os robalos. Por exemplo há dias um dos veteranos daqui apanhou um daqueles enormes ao pé da ponte (três quilos, parece). Eu mesmo, se quisesse, bem podia ter-me armado em Robinson Crusoe. Tanto mas tanto robalo, nadando à beira mar, nadando à beira rio. Sem medo. O máximo mesmo era desviarem-se um pouco quando mergulhava, numa atitude que mais parecia dever à boa educação que outra coisa, como que a dizer deixa lá este aqui também poder nadar à vontade... De resto, é quase como se quisessem ser apanhados. Ou como se quisessem dali ser desafiados. Mas não vale a pena cair em aparências. Iludem, andávamos é ao mesmo, em paz e longe do maralhal, que volta. Que sempre volta. Pelo menos para ali sempre volta. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Cinema

Toda Ela é Cinema
Sua presença se sente
não apenas se vê
não se filma meramente

Também nem que a visse antes
Musa-imagem assim fotografada
Iria alguma vez imaginar como
Absorve todo meu olhar filmada

E que em seu longo plano me tento
Como vento a emergir da escada
Em todo um acto que só vendo
Pairar depois assim de mim picada

Toda Ela é Cinema
Longo curto mover fixada
Dissipando a parte do presente
É todo o plano ficará mais nada

"Let's Play Cards"

A violência em Abel Ferrara é uma violência. Não é agradável. Não é preciso pintá-la em sangue e morte para torná-la impressiva. Não é estilizada à Tarantino. Não é coisa de efeito (nem é) decorativo - mesmo quando traz em si todo um jogo... Também não é aquela violência reflexão sobre a violência, como em seu Mestre Pasolini. Abel Ferrara assume Pasolini e Godard à cabeça, e quando muito, John Cassavetes, mas tem de tocar seu próprio som, que isto a cada músico a sua peça. Isto escondendo muito bem o profundamente auto-biográfico, que com algum conhecimento de causa, se pode ver ali bem impresso em filme. Esse cinema de quem se sabe fundir num argumento para depois, na realização, na improvisação com os actores, na importância do som e da fotografia, e até mesmo na produção e tudo o que rodeia a feitura da obra - como não podia deixar de ser quando falamos em verdadeiro trabalho de equipa e espírito de missão ou mesmo de guerrilha - tudo se completar em seu círculo círculo coeso, denso e fechado: «is an honour to make movies, a gift from God», diz o cineasta ítalo-americano algures enquanto lembra esse Orson Welles que levou quase uma vida inteira a achar que começaria a filmar na semana seguinte...

Voltemos pois à violência, que é o que aqui é me interessa (eis no que dá começar posts pelo fim), ao invés de é aqui o que interessa. Porque apesar de tudo é uma violência que nunca é princípio, meio ou fim, pois não tem princípio, nem meio, nem fim - ou mesmo forma de (se) acabar. Essa violência que, improvisada, é também contida e distendida, para poder disparar a todo o momento. Como nesse célebre jogo de cartas que acabou quando nem sequer tinha começado. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014



Há uns anos andava por Campo de Ourique um sósia de Samuel Beckett. Não sei se algum de vós o viu. Se o viu então sabe. Eu via-o sempre ali perto do Bitoque, em plena Ferreira Borges. Depois um blogue entretanto extinto e depois reabilitado testemunhou-o para a posterioridade, ou pelo menos, vá-lá, como marca dos dias. Não era para menos e repito: Samuel Beckett ali perto do Bitoque, em plena Rua Ferreira Borges, muito fácil de encontrar.
Pois Vila Nova de Milfontes deu-me ontem o seu primeiro sósia. Um sósia menos distinto e brilhante. Mas distinto e brilhante de outra maneira. Era um sósia mas ainda assim foi preciso ver melhor. Então estava para ali de tablet na praia. Se arrastava a neurose não sei. Parecia é assim meio à rasca com qualquer coisa... A expressão a puxar o ansioso, os olhos assim meio esgazeados. Exactamente o Franky Vercauteren* do Sporting. Assim meio esgazeado, assim meio à rasca. 

*- o oposto do grandíssimo Vercauteren da minha infância que tão grande jogador era.