quarta-feira, 12 de junho de 2013

Tábuas Rasas


Olho o copo de vinho meio cheio sobre a mesa. Aprecio a luz do sol pelo estore dando linhas ao vidro da janela. Na mesa ainda o prato, pão, talheres, vinho, oregãos, tabasco, migalhas, telecomando. O silêncio à espera de ser levantado. 

Na medida em que se enreda, vai revelando seu enredo. No processo, interminável, tudo se acabará por enredar. Descoberto, é a própria descoberta. 

Fraquezas que na solidão são de uma maneira são as mesmas que nos seus mais diversos ambientes se formam completamente distintas. Tanto que nem se distinguem.

Apocalipse Segunda Guerra




Há sempre uma altura para ver, ouvir, ou ler qualquer obra. Há uns anos, quando estreou a tão badalada "Apocalipse Segunda Guerra Mundial" - série da France Television que teve o destaque bastante, ia ter imagens nunca vistas, cinquenta por cento documentos inéditos, etc e tal – eu ainda vi o primeiro episódio e gostei, mas não lembro porquê, acabei por faltar ao resto. Também não faço a mínima porque vi tudo agora. Não interessa. Antes assim, em catadupa, não fosse toda a série mostrada como uma longuíssima sequência, ponta a ponta, como se uma determinada noite da minha vida estivesse reservada para isso - portátil ligado, auscultadores nos ouvidos, ver para crer, voltar atrás, parar se necessário. Sentida a vertigem, perdoem o cliché, passei a dividir tudo o que vi e li até agora sobre a Segunda Guerra Mundial de um lado, e do outro esta série magistral. Que se dane se não estou a ser justo ou "objectivo". 

Apetece-me começar pelo som, com pujante banda sonora do japonês Kenji Kawai em simultâneo com o som directo ou a leitura feita das imagens em movimento. Seu poder de encaixe com a narração não vem apenas da interpretação sonora da mais sangrenta das guerras, joga também com os sons característicos, ou se quiserem, género de trilhos sonoros*, que nos sabem ilustrar o perigo, o terror nazi, a febre do combate, as vidas (ainda) intactas, as partidas, fugas e abandonos, depois Moscovo, o Pacífico, Mac Arthur, Hiroshima...cada episódio a desaguar no tema final do genérico que serve de imagem ou cartão de visita da série; ali não podia deixar de estar a piscadela de olho ao mestre Ennio Morricone. Oiçam e não se enganem. 

Dito isto, "Apocalipse Segunda Guerra" tem outros valiosos atributos muito além do trabalho exaustivo de investigação e recolha de tudo o que se pudesse meter mão. Já falei na banda sonora, ainda não falei da montagem febril que nos mantém numa sensação de constante suspense que pelo menos a mim me deixou mais de cinco horas a seguir uma história que sabia como iria acabar. Muito ajudam as inúmeras imagens que nunca tinham visto a luz da humanidade, gente anónima, outro jacktpot da série - tocar o particular, as histórias para além da História, as histórias esmagadas pela História. Por exemplo a da menina inglesa que contava dos bombardeamentos filtrado pela explicação dos pais que pelos vistos gostavam de filmar em Super-8. Em outros exemplos nós apenas presumimos que....O efeito, conseguido, é aproximar das distancias, temporais e humanas, ver como podíamos sofrer o mesmo, marcados e sem redenção possível. Marionetas de um teatro fantasmagórico que hoje em dia parece, mesmo que muito ténue e timidamente, ganhar forma nesta Europa de governantes tomados de desfaçatez, ignorância e estupidez militante. Não foi assim à tanto tempo. Na nossa Europa, na velha Europa. Onde as marionetas são gente de carne e osso. Têm rostos, alguns bonitos, como a moça que comecei a ver num genérico final e que mais tarde vim a descobrir que era uma ucraniana, quiçá cortejada por um oficial nazi num momento em que em sua casa se davam chá e bolinhos aos "libertadores" do jugo estalinista, pelo que não se tardou a ver, não lhes valeu de nada. O que está mau pode sempre ficar muito pior. 


* - A mim fez-me lembrar Ennio Morricone nos western spaghetti de Sérgio Leone.