quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Apontamento sobre o KING


Já tinha escrito sobre umas 18h50 no Cinema Monumental. O cinema King, melhor ou pior, andaria pelo mesmo. Ou talvez não tanto, que cinema mais de culto alimenta mais o culto. Culto de uns poucos quantos, uns poucos quantos que só têm vindo a diminuir. Até um dia o culto acabar. 
Viva eu quinhentos anos, o King há de ser sempre o meu cinema. Hoje e desde os meus dezasseis, dezassete anos. Do mais recente ao mais antigo. De Nicholas Ray a John Cassavetes. De Wim Wenders a Vincent Gallo. De Jean-Luc Godard a Abel Ferrara. De Nanni Moretti a Jim Jarmusch. De Robert Brésson a Emir Kusturica. De Hal Hartley a Miguel Gomes.  De David Lynch a Pedro Almodóvar. De Eric Rohmer a Aki Kaurismaki. De Michelangelo Antonioni a Abbas Kiarostami. De Monte Hellman a Takeshi Kitano. De João César Monteiro a Wong Kar-Wai. De Gus Van Sant a Christophe Honoré. Podia continuar este exercício de memória(s) como um puzzle ou como um quizz. Podia ajudar com outras salas, que sempre senti como sucedâneos do King, quais satélites em redor de um centro. Falta este, esqueceste aquele, este viste-o mais no Monumental, ou terá sido no Saldanha Residence, aquele outro foi no Nimas, não, foi no Ávila, não te esqueças do Quarteto, que foi ali que começaste a ver mais vezes cinema a sério. 
A Cinemateca era um outro universo, onde me guardei para outras mitologias - "Aurora", "The Night of the Hunter", "Sunset Boulevard", "Badlands", "The Fountainhead", "Barry Lindon", "The Searchers""F For Fake", etc. Tanto para dizer que só mesmo o fim de algum destes dois cinemas me poderia dar este sentimento forte e agudo de perda cinéfila. Pois é o que sinto por dentro com o encerramento do King. A parte maior e principal de uma aventura que se me iniciou aos cinco anos de idade com um filme chamado "Se a Minha Cama Voasse", no Cinema Tivoli, com a turma do pré-primário. Jamais esquecerei a experiência, aberto o cortinado, gigante a primeira tela de cinema, e depois, a vida dentro, magia pura, o reino dos sonhos, o absoluto fascínio, momentos de pura revelação. Repetimos com outro da Disney, o "Bambi", noutro cinema hoje extinto - o Cinema Europa - e repetiu-se o maravilhamento, inigualável. E sabia lá eu nessa altura ver um filme com um mínimo de requisitos, sentir a experiência sim, a experiência do momento que é de tudo o mais importante no grande ecrã, tudo o que não se pode ter perante um ecrã de televisão. Como já disse Godard (cito de memória): na sala de cinema somos subjugados pelo cinema, no vídeo somos nós que o subjugamos, o que faz toda a diferença. Diferença essa que mais se acentua em certo tipo de filmes. Uns porque perdem tudo fora do grande ecrã, outros porque não teremos praticamente hipóteses de os ver outra vez. É para esses, e não só, que há cinemas como o King. E que se vão extinguindo como os teatros e as livrarias. Que as razões do encerramento são várias eu sei - do brutal aumento do IMI a provocar o quiçá incomportável aumento da renda do espaço, a enorme crise em que vivemos, o peso das distribuidoras e dos shopping centers, a pirataria -, que tal sirva de desculpa já tenho algumas dúvidas. As suficientes para não posso pôr o meu grão de areia fora da equação. Sempre foram milhares de grandes momentos, um porto de abrigo de muitas tardes e noites, uma referência de vida, um lugar de aprendizagem, cultura, mundo e experiência, onde muito vi e aprendi. É tramado.