terça-feira, 20 de agosto de 2013

Vala Comum





Cinquenta páginas de prosa com balanço para muito mais, "Vala Comum", de manuel a. domingos, lê-se num tiro. Viagem auto-biográfica entre memórias de um passado e impressões difusas de uma vida em seus múltiplos comprimentos de onda - humor, amargura, ironia, cinismo, sarcasmo, notas mais pueris, dispensáveis ou no mínimo discutíveis - onde tudo parece rodar, qual espiral em torno das obsessões, embirrações, idiossincrasias, contradições, subjectivismos ou superficialidades caras ao autor, temperadas aqui e ali por estórias sumarentas a pedir para ser contadas. Tomadas por uma certa arte do desconcerto

Como é costume dizer: cada um tem aquilo que merece. João César Monteiro disse num dos seus filmes (cito de memória): «não se nasce português». Ora eu não sei se ando a ficar português, mas tenho alternativa? Não sei. É uma das muitas coisas que me atormenta. Mas durmo bem à noite. Se o colchão é bom, claro. Há colchões que são uma boa porcaria. E há pessoas que alugam casas com camas que têm colchões horríveis. É como aqueles anúncios de quartos com janela e a janela, afinal, é o postigo no alto de uma parede. Mas não é isso que me tira o sono. O café é que começa a tirar-me o sono.

E por aí fora, que o assunto não acaba aqui, nem muito menos começou. Pois que ligada e ao mesmo tempo desligada do seu todo, cada frase como que dribla a anterior e parece querer fugir numa longa finta que há de acabar nalgum lado. Claro que é parte de sua sequência lógica, o interessante é que essa mesma sequência vem desse drible desconcertante. Difícil? Sim ou não, largo a bola e pego na improvisação do jazz (ou de algum jazz-rock dos setentas) onde sobre meia dúzia de acordes os excelentes músicos se perdem para se reencontrarem mais à frente, para depois se voltarem a perder, e assim sucessivamente. Como improviso, esta suposta mini auto-biografia serve também como um longo monólogo que, concordo, podia perfeitamente ser levado a cena. É que eloquente quanto baste, dá-se a ler em voz alta. Mesmo em silêncio tem vezes que parece que temos o escritor ali ao nosso lado a contar-nos (das) coisas. Nesse aspecto lembrou-me "Life", a extraordinária auto-biografia de Keith Richards. Puro efeito de ilusão, eu sei, e ainda bem que assim é. Como quando me apeteceu dizer, «Manuel, dá cá mais cinco» 

A adolescência é um território muito estranho. Foi dolente e sem qualquer rasgo de originalidade - em todos os sentidos.
(...)
[sobre António Lobo Antunes] 
Os seus últimos romances são uma cacofonia completa. Aquilo que escreve não lembra ao demónio e não é devido a isso que é grande literatura. São apenas uma cópia manhosa (e com um certo exagero estilístico) do Som e a Fúria de Faulkner! acho que não é tão difícil ver isso, ou é? Ás vezes questiono-me se sou eu que vejo coisas onde elas não existem.
(...)
Existem outras coisas das quais eu não gosto. Por exemplo: não gosto da música rock convertida em jazz ou bossa-nova. Ainda o outro dia ouvi Smells Like Teen Spirit - que é uma música dos Nirvana, cujo título foi inspirado num desodorizante muito popular chamado Teen Spirit - em versão jazz e nem consigo descrever o arrepio que senti na espinha ao ouvir tal coisa. 
(...)
Querem um exemplo: Céline. Mais directo que ele conheço poucos escritores. Talvez um outro: Bukowski. Este é mesmo muito, muito directo. Tão directo que quase ninguém o entende. Tão directo que é bastante ignorado, pois a chamada "crítica" só considera realmente literário aquilo que é praticamente incompreensível. Exemplo: Finnegans Wake. Não me espantava nada que o início do livro fosse utilizado em exorcismos. Porra, aquilo afasta qualquer demónio.