domingo, 15 de julho de 2012

Nugent




Sempre conheci Ted Nugent como um desses poseurs de permanente e cabelo oxigenado cravejados de clichés, solos infinitos de guitarra e aquelas capas de LP inenarráveis. Nunca senti mínima curiosidade em ouvir o que ia lá dentro. Naturalmente que me esqueci do Nugent durante anos, nem sabia se ainda era vivo, assim como não faço ideia onde andam agora os dois gajos dos Hall & Oates. Só há uns meses é que dei com o Nugent, numa entrevista em que um Mark Lanegan meio envergonhado confessou que o primeiro LP que comprou na vida foi do Nugent. Tardou pouco voltei a dar com o Nugent, desta vez num Anthony Bourdain. Tão diferente que não o reconheceria na rua. Mais velho, mais cara de gente, entre um ranger do Texas e uma estrela reformada dos Eagles. Confesso que até simpatizei com o carisma e autenticidade do homem, aquele lado politicamente incorrecto que às vezes faz tanta falta, mas pelo Bourdain, pelas falas, pelas armas, imaginei logo que o Nugent devia estar metido com a pior corja da direita conservadora mais fundamentalista e reaccionária que existe no planeta. Não me enganei: : membro do NRA (claro), paixão exacerbada por Sarah Palin, apaixonado do Tea Party, contra a Segurança Social (vão mas é limpar sanitas, diz ele), anti-Obama primário ("é um comunista que devia estar preso", ; "estarei morto ou na cadeia se ele for reeleito"), a favor da eliminação física (leia-se tiro ao "pombo") dos mexicanos que entram ilegalmente nos Estados Unidos. Em cada três palavras que soletra uma é sobre pátria e moral. Depois há quem diga que achou graça ou, no mínimo, desrespeitou a morte de Kurt Cobain (menos um drogatito) e o assassinato do guitarrista dos Pantera, etcetera e etcetera. Ted Nugent é uma enciclopédia de controvérsias. Ele é Nugent em tudo o que é programa de TV da direita mais conservadora, da dedicada às mais intrincadas teorias da conspiração e também de outros, liberais,  painéis da CNNgritaria na CBS. Ted Nugent diz sempre de sua justiça. 
O problema, porém, é o busílis da questão, e o busílis da questão é que o patriota absoluto que quando se chateia com alguém chama-o logo terrorista ou comunista, que apoia as tropas no Iraque e no Afeganistão, que está constantemente a fazer eco da Segunda Emenda (a do direito de todo o cidadão americano em usar armas, claro), na hora da verdade, na hora da verdade, olha, baldou-se: Ted Nugent baldou-se ao Vietname. Mas nem é a tão humana compreensível balda aqui o que verdadeiramente comove: é o requinte com que o fez. Tivesse fugido para as montanhas, montava uma cabana e podia tocar guitarra e caçar veados à vontade. Mas não, Nugent é muito à frente, preparou-se, elaborou o plano. A história remonta a 1977, quando talvez ainda em fase imatura "inconsciente", Nugent confessou com pormenores que uma das medidas que tomou para escapar ao exame da tropa foi fazer todas as necessidades nas cuecas durante dez dias. Repito: todas as necessidades nas cuecas durante dez dias. Dez dias. Estou a ser educado. Não digo mais nada para não vomitarem. O Nugent é mesmo NugentAgora desmente, como se uma história de merda e mijo a acumularem-se durante dez dias numa área tão curta e restrita pudesse ser estória que se pudesse inventar por dá cá aquela palha. Mas antes fosse, é que não podendo desmentir que desertou, porque desertou, Nugent desculpou-se dizendo que na altura era ignorante e nem sequer sabia o que significava isso do comunismo. Pior a emenda que o soneto: então um fanático patriota daqueles nem sabe o que é o comunismo em tempos de Guerra Fria? Pedro Passos Coelho não conta.

Adenda: outra, Nugent a cobrar dinheiro por autógrafos, a cobrar não, a regatear. Na nota do vídeo diz que é para a caridade. O padrão repete-se. 





sábado, 14 de julho de 2012

Ligação directa


Tenho andado a escrever bastante, na maioria contos, e quanto mais escrevo mais ideias tenho para escrever mais e mais fica por escrever, ideias essas que não servem esta página por onde agora quero entrarUm blogue não é um diário, não é, nem pode ser, o jornal de uma pessoa - nem jornal de coisa nenhuma, aliás. Não se coaduna com um registo rigoroso e factual de acontecimentos, serve, quando muito, visões e pontos de vista, é, se quiserem, uma lente potente para certos ângulos, formas de pensar e sentir,  re-misturas de invenção com realidade, às vezes pura criação. Ser aborrecido é a morte do artista, ser auto-indulgente também; o aborrecimento, a auto-indulgência, o erro, algum pedantismo, fazem parte do processo, podem ser atenuados, completamente dissipados,  mas uma vez ou outra lá se fazem anunciar. 
Ler blogues serve sobretudo para pôr as coisas em perspectiva, refrescar ideias, ganhar algum sentido de humildade com gente que escreve melhor que nós, que julga melhor, que sabe mais. Eventualmente “nós” também poderemos ter coisas que “eles” ou "elas" não tenham. É essa a graça da coisa, é daí que leio blogues desde 2003. Alguns deles (poucos, cada vez menos) são mesmo tão bons - até em baixo de forma - que conseguem entrar-me no sistema, que depois se habitua. Ler muito é importante, passe a redundância. E escrever pode ser tão importante como ler. Sobretudo para pensar, é que por vezes não se chega lá de outra maneira. Mesmo assim vejo-me aqui todo enferrujado. Pode ser da máquina. O blogue na volta tem uma personalidade, um carácter peculiar, um motor esquisito. Acho que a maioria não faz ideia do que é um blogue como deve ser, eu também não sei ao certo. Tenho um palpite, mas não me serve para post nenhum. 

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Da sorte e falta dela

Por vezes falta de sorte não é mais que falta de entendimento, a manifestação de que algo não está a ser devidamente entendido, sequer apercebido, algo de decisivo, que conta, na fórmula, na equação geral do todo. Como a tempestade, criada por pequenas, ligeiras desarmonias. 

Nem com o sol-posto




Os mitos ganham raízes fundas. Escrevas o que escreveres, haverá sempre alguém pronto a ousar as interpretações mais descabeladas, a encontrar códigos ocultos na letra. É a mesma lógica das teorias de conspiração. Sicrano morreu. Oh, meu Deus! De certeza que há um culpado. Quando o gajo caiu para o lado sozinho. A verdadeira seiva de uma boa teoria da conspiração está justamente no facto de ser impossível descobrir a verdade; é a falta de provas que a mantem fresca. Quem é que pode saber se eu fiz realmente uma transfusão total de sangue? Que provas é que podem apoiar essa tese? Ou, sendo ela falsa, quantos desmentidos meus é que a conseguirão deitar por terra? Zero, no primeiro caso; nem mil no segundo. 
(...)
Dirigia-me á Suiça, para uma desintoxicação na clínica, e tive de fazer escala em Heathrow. Mais uma vez, lá veio o batalhão da prostituição jornalística: «Keith, só uma pergunta...»Ao que lhes respondi: «Foda-se, calem-se! Vou mudar de sangue.» Zás, mais nada. E entro no avião. Depois disso, parece que a história passou a fazer parte das Sagradas Escrituras. Só disse aquilo para desnortear os gajos. Mas da fama nunca mais me livrei. 
(...)
A tua imagem, a tua persona, como lhe costumavam chamar, é uma espécie de grilhão. As pessoas ainda me julgam um pobre de um agarrado, apesar de já ter deixado a droga há trinta anos! A tua imagem projecta uma longa sombra que não desaparece nem com o sol-posto.


Keith Richards (com James Fox), "Life" (2010), Tradução José Luís Costa, Theoria (2011) 


domingo, 1 de julho de 2012

Roll and rock


Sem que sequer nos dêmos conta, há algo de primordial no modo como reagimos a uma pulsação. Toda a nossa existência é governada por um ritmo de setenta e duas batidas por minuto. Se o comboio teve um papel tão importante para os músicos de blues, não foi só por lhes permitir viajar do Delta até Detroit; foi sobretudo pelo ritmo das locomotivas e das próprias linhas: mudavas de linha, mudavas de ritmo. É como um eco do que se passa no interior do corpo humano. Mesmo que venha de uma máquina, de um comboio, a percepção que o teu corpo tem disso é de natureza musical. O corpo humano é capaz de sentir ritmos até onde eles não existem. Ouçam Mistery Train do Elvis Presley: um dos maiores temas de rock and roll de sempre, sem um único instrumento de percussão. O ritmo é apenas sugerido; o corpo trata do resto. Não é preciso torná-lo explícito. Julgo que as pessoas se enganam quando falam de rock and roll. Não tem nada a ver com rock, tem tudo a ver com roll.

Keith Richards (com James Fox), "Life (2010), Tradução José Luís Costa, Theoria (2011)