terça-feira, 19 de junho de 2012

Lost Highway


Deu-me uma definição de amigo: a de alguém que nos virá buscar de madrugada a uma estrada se o carro nos pifou. Essa estrada tem de ser longe, no mínimo 100 quilómetros. A medida é essa. Para os amigos, mas no limite há também muito boas pessoas que também o possam fazer. Aqui há que separar as águas, os amigos não são necessariamente muito boas pessoas e as muito boas pessoas não são necessariamente amigos, ou amigas, não interessa, o que interessa aqui é a estrada longínqua e o ficarmos apeados, sem carro,  sem luzes e sem forças contra os elementos.
Eu tenho a minha estrada perdida, é ali perto de Grandola. Não tem luz, não tem rectas e não tem fim. Só curvas atrás de curvas atrás de curvas. Não lembro as horas, era noite funda, escura, longínqua. Demorávamos tanto a sair dali que a imaginação ganhava a dianteira. Cheguei a imaginar um encontro imediato de terceiro grau. Essa era a melhor hipótese, a pior era bem real: tínhamos colado atrás um carro com os faróis nos máximos. Andávamos há vinte minutos nisso. Depois trinta, depois quarenta, depois cinquenta. Acelerávamos, vinha atrás, abrandávamos, não ultrapassava. Nós vinhamos de Vila Nova de Milfontes, tinhamos esticado o fim de semana ao máximo. Voltar a Lisboa custa sempre. Largar o Alentejo também. Mas naquele momento éramos só nós, as curvas, a escuridão, e , quem sabe, um psicopata a querer conversa. «Tarda nada estamos em Elvas", ou, "será que ainda estamos em Portugal?». Curvas, curvas, mais curvas. Mata cerrada. Conheço-a bem. Cheguei a estar aqui quinze dias num monte dos pais de um amigo meu. O monte dava para a auto-estrada, ao pé disto era a Civilização. Foram duas semanas bem passadas, fartámo-nos de caminhar pela zona. Cercados por pegadas de javali. Podia-se viver ali a caçar javalis. «Mas cuidado, olha que eles atacam sem medo. Costumam morder nas virilhas.» Ainda hoje associo javalis a virilhas. Tal como associo Hitchcock a pássaros. É para a vida. Qual tatuagem mental. As outras ao pé disto não passam de tribalices sem sentido. Adiante. Foi mais meia hora de pesadelo. Sem nenhum encontro imediato de terceiro grau, sem que o cromo dos máximos nos conseguisse atirar estrada fora. Seguimos sem parar, sempre a  acelerar, até já não acreditar que a piada poderia ter um fim, aí encontrámos os neons da auto-estrada e a sinalização dos cento e tal quilómetros para Lisboa. Estávamos encadeados. Do perseguidor nem sombra. Terá seguido caminho, terá feito inversão de marcha, será um cativo daquela estrada, um fantasma. Gostava que o David Lynch descobrisse isto ao pé de Grândola. 


terça-feira, 12 de junho de 2012

Mais uma para a estrada

Vi finalmente o documentário “Os Donos de Portugal” que tem que se lhe diga em relação ao estado a que isto chegou versus discurso dominante, ou não, que os dois lados pertencem à mesma moeda. Atente-se no caso de Pina Moura, que do comité central do PCP se converteu em privatizador suspeito de concessões escandalosas nos seus tempos de governo PS, acabando agora a elogiar o "excelente trabalho" deste governo que vive nos antípodas do governo António Guterres de que tomou parte de destaque nas Finanças e não só. 
Há quem diga que os ex-PCP são os piores, outros dizem que são os ex-maoístas. Eu nem uma coisa nem outra. Sei de fonte segura que após o 25 de Abril milhares de pessoas foram-se inscrever no PCP. Achavam que isso é que era estar do lado certo da História. Os diários de Miguel Torga e Vergílio Ferreira dão um cheirinho do fenómeno. Vão lá e leiam. 
Tenho um amigo que parece que me ligou por causa da profusão de postas anti-estemiserávelgoverno que tenho posto no Facebook. Digo parece porque ele entretanto desligou a chamada com uma desculpa de estacionamento. Tinha marcado o seu ponto e se calhar não podia continuar. E eu a pensar que se marimbava... Lembra-me outro que sai para a rua quando o PSD ganha as eleições e um dia disse-me que não era de Direita nem de Esquerda, era é de onde está o dinheiro. Como aqueles que dizem que não são do Sporting nem do Benfica mas vão sempre para o Marquês festejar. Como se apanhando-o num daqueles nojentos regimes comunistas tipo Ceaucescu algum dia viesse também dizer que era é de onde está o trabalhador e o mais longe possível do capital, esse demónio. 
Tem gente que não faz outra coisa na vida: posiciona-se. E não existe coisa mais fácil de dispensar: essa gente. Que é tanta gente. Porque a gente sabe que as coisas são mesmo assim. 

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Salut, John Fante


"A cozinha. La cucina. A pátria de uma verdadeira mãe, a cave quente da bruxa boa, bem no fundo das terras ermas da solidão com potes de suaves porções a borbulhar ao lume. Uma caverna de ervas mágicas, rosmadinho, tomilho, salva e oregãos, que devolvem o juízo aos lunáticos, paz aos atormentados, alegria aos desgraçados. Todo um mundo numa divisão: por altar a banca da cozinha, por círculo mágico a toalha do xadrez onde comem as crianças, as crianças já velhas, de volta agora ao princípio de tudo, com o sabor do leite da mãe ainda presente nas suas recordações, com o aroma das narinas e os olhos a brilhar. Um mundo perverso recua lá fora enquanto a velha bruxa recolhe a ninhadas do alcance dos lobos. "

"Depois aconteceu. Numa noite em que a chuva batia no telhado da cozinha, um grande espírito entrou para sempre na minha vida. Tinha o livro nas mãos e tremia enquanto ele me falava do Homem e do mundo, do amor e da sabedoria, da dor e da culpa e eu soube, naquela altura, que nunca mais seria o mesmo. O espírito chamava-se Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky. Ele percebia mais de pais e filhos do que qualquer outra pessoa do mundo, e de irmãos e irmãs, padres e vagabundos, culpa e inocência. O Dostoyesky mudou-me. O Idiota, Os Possessos, Os Irmãos Karamazov, O Jogador. Virou-me do avesso. Descobri que podia respirar e ver horizontes até então invisíveis. O ódio que eu sentia pelo meu pai derreteu. Eu amava o meu pai, aquele pobre, sofredor, um destroço assombrado. E amava a minha mãe também. E todo o resto da família."

John Fante, "A Confraria do Vinho", (1977), Tradução de Luís Ruivo , Teorema, Junho 2007 

Ray Bradbury (1920 - 2012)


We have our Arts so we won’t die of Truth.” 


terça-feira, 5 de junho de 2012

A basement kind of guy




There is a muse. He lives in the ground. He’s a basement kind of guy. You have to descend to his level, and once you get down there you have to furnish an apartment for him to live in. You have to do all the grunt labor, in other words, while the muse sits and smokes cigars and admires his bowling trophies and pretends to ignore you. Do you think it’s fair? I think it’s fair. He may not be much to look at, that muse-guy, and he may not be much of a conversationalist, but he’s got inspiration. It’s right that you should do all the work and burn all the mid-night oil, because the guy with the cigar and the little wings has got a bag of magic. There’s stuff in there that can change your life. 

Stephen King, “On Writing”

segunda-feira, 4 de junho de 2012



LISBOA ANDAMENTO MADRUGADA


Lisboa andamento madrugada.
Cada zona é qualquer zona. Na luz das casas, a sua pele

Cores escamadas de memórias. Este agora antigamente.
Filme tão longo que nem nos lembramos do princípio.

Posso e devo prosseguir. Sobre a luz das casas, a sua pele.

De vez em quando, está claro, está festa, não fosse de Lisboa esta lágrima dolorida:
Rastos dos barcos, marés, navegações, e escondido tudo o que vem à rede é peixe...

Posso e devo prosseguir. Entre a luz das casas, a sua pele.

Agora o Tejo. Vivo. Torrente. Lembrante.
Depois um amigo, dois amigos. Papagueamos em silêncio.

Nunca nos lembramos do princípio.
São muitas mães, muitos pais, muitos avós mesmo anteriores a Roma...

Cada zona é qualquer zona. Sobre um sol nascendo, a sua pele.