Deu-me
uma definição de amigo: a de alguém que nos virá buscar de madrugada a uma estrada se o carro nos pifou. Essa estrada tem de ser
longe, no mínimo 100 quilómetros. A medida é essa. Para os amigos,
mas no limite há também muito boas pessoas que também o possam fazer. Aqui há que
separar as águas, os amigos não são necessariamente muito boas pessoas e
as muito boas pessoas não são necessariamente amigos, ou amigas, não
interessa, o que interessa aqui é a estrada longínqua e o ficarmos apeados, sem carro, sem
luzes e sem forças contra os elementos.
Eu
tenho a minha estrada perdida, é ali perto de Grandola. Não tem luz, não
tem rectas e não tem fim. Só curvas atrás de curvas atrás de
curvas. Não lembro as horas, era noite
funda, escura, longínqua. Demorávamos tanto a
sair dali que a imaginação ganhava a dianteira.
Cheguei a imaginar um encontro imediato de terceiro grau. Essa era a
melhor hipótese, a pior era bem real: tínhamos colado atrás um carro com
os faróis nos máximos. Andávamos há vinte minutos nisso. Depois
trinta, depois quarenta, depois cinquenta. Acelerávamos, vinha atrás, abrandávamos, não ultrapassava. Nós vinhamos de Vila Nova de
Milfontes, tinhamos esticado o fim de semana ao máximo.
Voltar a Lisboa custa sempre. Largar o Alentejo também. Mas naquele momento éramos só nós, as curvas, a escuridão, e , quem sabe, um psicopata a querer conversa. «Tarda nada estamos em Elvas", ou, "será
que ainda estamos em Portugal?». Curvas, curvas, mais curvas. Mata cerrada. Conheço-a
bem. Cheguei a estar aqui quinze dias num monte dos pais de um amigo
meu. O monte dava para a auto-estrada, ao pé disto era a Civilização. Foram duas semanas bem passadas, fartámo-nos de caminhar pela zona. Cercados por pegadas de javali. Podia-se viver ali a
caçar javalis. «Mas cuidado, olha que eles atacam sem
medo. Costumam morder nas virilhas.» Ainda hoje
associo javalis a virilhas. Tal como associo Hitchcock a pássaros. É
para a vida. Qual tatuagem mental. As outras ao pé disto não passam de tribalices sem sentido. Adiante. Foi mais meia hora de pesadelo.
Sem nenhum encontro imediato de terceiro grau, sem que o cromo dos máximos nos conseguisse atirar estrada fora. Seguimos sem parar, sempre a acelerar, até já não acreditar que a piada poderia ter um fim, aí encontrámos os neons da auto-estrada e a sinalização dos cento e tal quilómetros para Lisboa. Estávamos encadeados. Do perseguidor nem sombra. Terá seguido caminho, terá feito inversão de marcha, será um cativo daquela estrada, um fantasma. Gostava que o David Lynch descobrisse isto ao pé de Grândola.