segunda-feira, 26 de março de 2012

Infinito


Se o Universo é infinito também o poderão ser as resoluções cientificas que o tentam desvendar. Dizem que somos feitos de estrelas, o cálcio dos nossos dentes, o ferro do nosso sangue, os átomos do corpo, o oxigénio que respiramos, tudo o que temos foi feito em estrelas que explodiram. Talvez tenhamos estrelas diferentes em diferentes partes do corpo, talvez estrelas que distavam anos luz umas das outras. Tentando desvendar os seus segredos aproximamos-nos delas. 
No tampo desta secretária, ou na palma da tua mão, os micróbios apenas podiam ser imaginados ou intuídos pelos antigos. Para lá desses micróbios há moléculas, depois átomos, depois núcleos, depois quarks , leptões, bosões, depois...Há quem refira estes três últimos como o tecido do Universo, do espaço-tempo. Que alguns deles transitam mesmo entre os diferentes tempos passado, presente e futuro. Nunca se sabe. Os micróbios antigamente não passavam de meras abstracções. Tentando desvendar os seus segredos aproximámos-nos deles. 

António Tabucchi (1943-2012)



Cheguei a António Tabucchi através de Fernando Pessoa e do extraordinário "Os Três Últimos Dias de Fernando Pessoa". Mais tarde ofereceram-me o "Pequenos Equívocos sem Importância" de que gostei muito e deveria e poderia ter lido mais livros de Tabucchi, coisas que o tempo, a preguiça e outros escritores me impediram. Gostava dele. Tabucchi, mais que uma espécie rara de elegância e humanismo, era o acaso ou o Destino que decidira aprender o português depois de comprar num quiosque de Paris uma edição de "Tabacaria" de um tal de Álvaro de Campos que nunca ouvira falar. O tanto que veio a seguir é por demais conhecido. Longa obra à parte, António Tabucchi foi mais escritor português que muitos escritores portugueses. E lutou mais pela nossa cultura do que muitos dos "nossos".  

quinta-feira, 22 de março de 2012

O grande Conrad


O Joseph Conrad disciplinado, civilizado, polido, exímio no seu inglês, é também uma máscara. Perto da natureza selvagem é tudo mais livre e aterrador. A escrita em Conrad talvez funcionasse como um porto de abrigo, um ancoradouro inevitável perante o talento e genialidade e experiência e sofrimento acumulados. Joseph Conrad primeiro viveu para contar, depois escreveu para contar. Nele o escrever e o viver encontram-se de tal forma emaranhados, entrelaçam-se com tal força e profundidade que é incontornável que ambos se confunda. Um pouco como as árvores de troncos e raízes gigantescas das selvas e florestas inexploradas onde Conrad testou, em alguns livros, os limites do Ocidente. Talvez as raízes estivessem na experiência precoce e traumática de quase orfão fugitivo à sua Polónia invadida pela Rússia, talvez suas ramificações sejam combinados de memórias, testemunhos e imaginação. Muito poucos testemunharam ou puderam testemunhar tanto. Num mundo de aventura e perigo que acabou para sempre, um reservatório de vivências que não merecem o esquecimento, de pensamentos no fio da navalha, de sentimentos em suas mais obscuras contradições. Sob uma paleta literária absolutamente hipnótica. 

quinta-feira, 8 de março de 2012

O Palácio


O palácio não é infinito. Os muros, os terreiros, os jardins, os labirintos, as grades, os terraços, os parapeitos, as portas, os corredores, os pátios circulares ou reccâmaras, as alcovas, as bibliotecas, os desvãos, os cárceres, as celas sem saída e os hipogeus não são menos numerosos do que os grãos de areia do ganges, mas o seu número tem um fim. Das açoteias até ao poente não faltará quem aviste as carpintarias, as cavalariças, as oficinas e as cabanas dos escravos. Ninguém é dado percorrer mais do que uma parte infinitesimal do palácio. Alguns conhecem apenas os subterrâneos. Podemos aperceber-nos de umas caras, de umas vozes, de umas palavras, mas tudo de que nos apercebemos é infimo. Ínfimo e ao mesmo tempo precioso. A data que o aço grava na lápide e que os livros paroquiais registam é posterior à nossa morte; já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um anseio, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.


Jorge Luís Borges, O Ouro dos Tigres (1972), Tradução Fernando Pinto do Amaral, Obras Completas II 1952-1972,  Círculo de Leitores, Outubro 1998, p.513

terça-feira, 6 de março de 2012

Le Havre



Passamos as duas horas de "Le Havre" deliciados e um pouco mais esperançosos por ainda existir quem filme assim. Só alguém com a liberdade de Aki Kaurismaki - tão dentro da respiração da sua arte, das suas leis, ritmos, tempos de maturação - pode chegar a este Cinema. De um despojamento, humanidade e candura desarmantes. Com os personagens ao nível do filmado: dignos, sólidos, éticos, consistentes.  Personagens como o velho Marcel Marx, a sua dedicada esposa estrangeira, a intrepida criança africana, a leal barmaid, o distraído e simpaticíssimo merceeiro, a vizinha amiga e solidária, o inspector policial com a sua ética muito própria a marcar a diferença. Todos constatando, na saga da criança imigrante ilegal, o fascismo destes tempos . Sem choradeiras neo-realistas - Aki Kaurismaki chegou a mesmo dizer em entrevista que o realismo no cinema não passa de melodrama - não fosse o realizador finlandês um fruidor, um amante da boa vida, dos lugares, dos copos, das conversas. Sofredores sim, mas com estilo. Até porque é nas margens que este cinema encontra a vida, a autenticidade, alguma verdade.

It's Only Rock 'n' Roll



Agarrado à ideia – vinda de não sei onde para não sei que parte da minha cabeça – que os Rolling Stones acabavam com o “Its's Only Rock'n'Roll”, isto para ser politicamente correcto, porque para mim sempre tinham acabado no “Exile On Main Street”. Agarrado à ideia, dizia eu, duma qualquer pureza ideológica, nunca tinha prestado atenção a uma obra-prima como o “Some Girls”. Quadradice juvenil, depois esquecimento, depois coisas mais "importantes" para ouvir. O que me lixou foi o “Start me Up”, canção daquelas feita para vender e para estragar as expectativas a quem gosta do muito melhor, e que depois não conhecendo fica sem vontade de ouvir mais nada, achando que os Pink Floyd são a banda do "Money" e do "Another Brick In The Wall". O mesmo com o “Satisfation”. Foi a primeira canção que ouvi dos Stones e nunca existe uma segunda oportunidade de causar uma primeira boa impressão. Nada de grave,  a primeira boa impressão nem sequer era juvenil. Era infantil. 
O “Some Girls” ajuda a aguçar-me o interesse pela fase pós Brian Jones/Mick Taylor, estragada ainda mais com o desatroso ultimo concerto que fizeram em Alvalade, para as massas no duplo sentido do termo e para quem não tem nem ideia de metade daquilo que uns Rolling Stones são capazes de fazer. Se calhar o ter bebido antes uma cerveja ao lado do Pestana era uma sinalização para o que aí vinha: rock' n 'roll de hotel, encenação plastificada, betalhada,  som baixissimo, músicos ausentes. Teve uma virtude, apenas uma, mas ainda assim uma grande virtude: a de não me ter arrependido para a vida por ter perdido a "ultima oportunidade". Numa altura em que vivia no Lumiar. Se por um lado conseguia ir a pé ver o Sporting jogar, por outro punha-me a ouvir os concertos quase na íntegra. Em suma, fiquei com receio do que iria perder, de imaginar o que seria estar lá, de me zangar comigo próprio. O arrependimento do que não é feito é das coisas mais idiotas da vida.