quarta-feira, 21 de setembro de 2011

La Coca



"La Coca" de José Rentes de Carvalho começa à volta de uma reportagem policial sobre o contrabando e tráfego de droga no norte de Portugal. Passando de fugida pela zona ribeirinha do Porto e Gaia segue depois para onde está a acção: no Minho e na Galiza. Aí o enredo emaranha-se em inúmeras histórias fascinantes em roda de contrabandistas, traficantes de droga, polícias e um jornalista "suicida". Mais tarde surgirá uma culta tutora francesa com o gosto dos livros, um lorde inglês erudito e milionário e até Pablo Picasso que se torna decisivo num diálogo confirmado pelo próprio Rentes de Carvalho em recente entrevista. Só lendo.
Em todas essas histórias, ou memórias se quiserem, o único fio condutor é a lembrança do que aconteceu e do que ainda pode ser testemunhado. As recordações têm buracos, falhas, são inseguras, pouco fiáveis, cheias que estão de impressões e subjectividades quer advindas do tempo presente, quer embotadas pelo próprio sujeito que já não se reconhece o mesmo nos emaranhados e complicados caminhos da vida. Nada que atrapalhe a leitura pois o livro lê-se de um trago. Na verdade fica-se literalmente agarrado a "La Coca" desde a primeira frase.
Romance com mistos de reportagem, biografia e relato de viagem, "La Coca" parece desenrolar-se sob a memória como um policial - o que aconteceu, o que ficou por acontecer, o que perdura, o que se esfumou no tempo. É sob a recordação que gira toda a sua maquinariaA nitidez da escrita faz o resto: vêem-se as paisagens, as pessoas de carne e osso, sentem-se os ambientes. Os relatos são primorosos, os diálogos sumarentos, os personagens únicos. Mas sempre com a neblina da memória a pairar como dúvida, cheia de perguntas a que o tempo foi diluindo as respostas confundindo o real com o imaginado. O que fica não será tanto o que se viveu mas o que ficou contado. Sem frases a mais, numa escrita virtuosa, elegante, fluída, certeira, sem palha para queimar, com uma beleza e trato de língua só ao alcance dos grandes escritores. Para terminar assim, em testemunho: 
«Julguei viver. Tive aventuras e medos, conheci alegrias, conheci paixões. Tudo fugidio, curto demais. Fundindo o ontem no hoje o tempo negou-me o espaço onde eu me pudesse reencontrar, tornou hostil o que pelo hábito dos anos me deveria ser querido, levou-me a olhar com indiferença o que foi familiar. E agora, constrangido dou-me agora conta de que na minha vida nunca realmente houve partidas nem chegadas, nem pessoas, lugares ou eventos. 
O que nela existiu e se prolonga ainda são cenários e personagens, sombras, as imagens desordenadas da memória que, presas na narrativa, se tornam uma dupla ficção."