sexta-feira, 1 de abril de 2011

Entretanto existe a Coreia do Norte



Tinha gravado há meses, mas só vi agora - um "Toda a Verdade" sobre a Coreia do Norte. Não sei se viram, o meu irmão diz que já viu alguns no You Tube, e de facto não existe nada melhor para sem violência ou morte se poder ficar em estado de choque. Imagina-se "1984" e é mesmo assim. A cidade não tem transito nem carros e são os autocarros que escoam o povo de casa para o trabalho e vice-versa. Não há outra rotina. Tudo é vigiado, tudo é olhos e ouvidos presentes e obrigatórios. Assassinados, mortos à fome, ninguém deve saber, sob pena de morte que nem sequer constará como coisa, quanto mais como facto. O indivíduo é a perversão, o colectivo a salvação e para unir o conjunto só existe a figura do Grande Líder, o único possível garante de sobrevivência. 
Existe ali uma pizzaria, a única num país com mais de 20 milhões de habitantes, diz que o chefe supremo gosta muito de pizzas e enviou então um chefe para aprender a fazê-las em itália. É só para turistas ou figuras do regime, o comum dos mortais não deve sobrepor-se em questões de gosto, muito menos terá 5€ para pagar uma. Se quer comer tem farináceos, algas, e o que mais houver, e nem sequer interessa que morram por ano 800 mil pessoas à fome. Os pensamentos devem estão todos guardados para o Grande Líder, única garantia contra a perversão do mundo. Não há mais nada além dele, nem sequer morrer. 
Turismo ali existe ao preço das Seycheles, vindo de Operadores Turísticos especializados em pacotes para países em guerras, catástrofes, atentados e epidemias. Vão a Gaza, ao Iraque, ou ao Sudão para testemunhar o sofrimento atroz, faz parte do Pacote, depois há gente que paga e bem. Agora se calhar organizam excursões ao Japão do terramoto e à Líbia, caríssimas e exclusivas, escondidas porque as pessoas têm vergonha, sim, existe uma economia gerada pela infinita tristeza. E dá muito dinheiro. Inclusive para a Coreia do Norte.
Os turistas são franceses, neste caso, comandados por dois guias-vigilantes-polícias nativos, e por um tour leader francês que pouco pode com seu ar de proto-nazi milionário pelas comissões que cobra. Entre os turistas está uma descendente de pai norte-coreano com ar de soberba assim meio mesquinho e um lambe botas a dizer bem de tudo aquilo com cara de personagem de um livro apocalíptico de Houéllebecq. Regra principal, ali ninguém pode passear sozinho, fazer perguntas incómodas, nem sequer tocar ao de leve no equilíbrio maquilhado do regime. O mais leve descuido pode descambar numa detenção de meses, ou em crescendo de uns anitos em trabalhos forçados, ou no limite a tortura e a morte. Não existem acordos de repatriamento com nenhum país do mundo, para eles, os outros países nem deviam existir. Dali, tal como nos Buracos Negros das galáxias, tudo o que entra não sai. É a chamada gravidade absoluta, que de tão pesada até a luz retém e é exactamente isso que se passa na Coreia do Norte, onde a gravidade é outra, mas de onde também nada escapa. 
Imagino 1984, a obra-prima de George Orwell, livro que marcou a minha vida e a de tanta gente. Orwell meteu o totalitarismo dentro do mecanismo literário e ficcional pensando-o até às ultimas consequências, o resultado foi o feito de tornar uma obra de ficção cientifica num tratado de realismo e capacidade de leitura e antecipação de cenários apocalípticos. A Coreia do Norte é "1984", é esse mesmo totalitarismo. É o país das ultimas consequências. 
Embasbacado em frente ao ecrã, fico a saber que a propaganda ensina que o chefe criador do regime, o primeiro grande líder, Kim II-sung é herói militar desde os 12 anos, mentira mesmo assim tão real quanto a vida: quem não acredita nisso entretanto já morreu. E nós, que não fazemos parte dos que acham que Kim II-sung não é herói militar desde os 12 anos, também não existimos. Porque lá dentro nunca existiríamos. E se Obama tentasse ali fazer o mesmo que fez agora na Líbia, e W.Bush no Iraque, pois todos juntos deixaríamos de existir. Kim Jong-il sabe que isso nunca acontecerá em séculos. E em Pyonyang, a mulher polícia sinaleiro do documentário, continuará a marcar um transito sem carros. Isso digo eu aqui, porque para eles os carros existem porque está lá a polícia sinaleiro. E vai daí, o povo a cem metros da dita lá  vai fazendo a sua ridícula e triste ginástica antes de ir apanhar os autocarros para o meio do "caótico" trânsito da cidade do Grande Líder. O duplo pensar dirá que a felicidade suprema é viver no meio do mais pobre dos fascismos igualitários. Não é em vão que alguns livros ensinam que toda a humanidade acaba no totalitarismo sem escape possível.