quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Estrada dos Prazeres


Os acasos, vontades e incómodos da vida sempre me mantiveram em Campo de Ourique, lugar que é mesmo minha casa, onde andei na escola, onde fiz a base, onde deu para quase tudo. Vivi três anos no Lumiar e gostei, mas depois voltei para aqui. Podia lá ter ficado que não me importava, gostava da vida que lá tinha, da namorada, do Gin que era (e é) o cão da (ex) namorada  e de poder ir para o Estádio de Alvalade a pé.
Mas voltei, primeiro para um apartamento do pior que há na Saraiva de Carvalho, cheio de incómodos surreais que agora dão algum gozo lembrar, mas que na altura não tinham graça nenhuma. Agora vivo na Estrada dos Prazeres, mesmo em frente ao cemitério. Não me importo nada de viver em frente a mortos, tenho muito mais medo dos vivos. E este até é o melhor lugar para se viver neste bairro. Continua ao lado de tudo, mas com muita calma e silencio aos fins de semana. Não tem as famílias inteiras com as pessoas entra-café-sai-entra-supermercado-sai que apinham Campo de Ourique enquanto se tropeça e com licença. É o melhor lugar agora, mas nos anos 90 era o pior. João Soares a presidente da CML tirou o "holocausto" daqui. Se eu de noite, no centro do bairro, via de uns 10 em 10 minutos um junkie a passar na direcção do Casal Ventoso, podem vocês imaginar o que seria aqui, onde por fim se dá com a Meia Laranja. Se em 10 ruas a cadência eram dez minutos, aqui as cadências fizeram que com que até hoje tenha sido proibido um trinco na porta deste prédio. Nem preciso de dizer porquê.
João  Soares prometeu acabar com as barracas do Casal Ventoso e foi o que fez. Acabou mesmo. Foi a única vez na minha vida que vi um político a cumprir o prometido. De resto, enquanto o chiqueiro se vai a acumulando na Lisboa mais porca da minha vida, o movimento da Meia Laranja vai aumentando em surdina. Agora dá-me para apanhar ali o autocarro num exercício com requintes de auto flagelação. É tiro e queda. Cruzo a esquina, dizem-me que têm "castanha" e "branca" da boa, não faço caso e sigo para a paragem a cinco metros. Eles também, mas num vai e vem, para trás e para a frente. Atrofiados. Mal cheirosos. Acabados. Uga uga anda aí a bófia. E eu, impaciente em sair daquele simulacro de inferno, olho no céu um avião minúsculo pelo voo alto a sair de Lisboa. Seria mais fácil ganhar o euro milhões do que algum deles poder encontrar naquele avião uma simples metáfora de sobrevivência. Voar bem alto para fora daquilo. Como João Soares ao conseguir acabar com o pior lugar do século XX lisboeta, se bem que há cautela seja  melhor continuar-se a fechar o trinco.